O Sindicato dos
Calígrafos está em assembléia permanente. Esta decisão não foi tomada de
chofre, e não é a resposta a uma situação aguda. Ao contrário, a medida se
impôs em decorrência do agravamento das más condições de exercício da
profissão, o que levou à convocação de sucessivas reuniões – primeiro mensais,
depois semanais e, por fim, diárias -, até que os calígrafos associados (em
número de trinta, atualmente) resolveram optar pela assembléia permanente como
forma de mobilização constante. Mesmo porque não lhes resta outra alternativa.
Permanecer em suas modestas casas de porta e janela, situadas em bairros
distantes, pensando sobre a vida, ruminando mágoas e aguardando a morte? Nunca.
Pelo menos na sede do sindicato – e até que o juiz julgue a ação de despejo
contra eles movida – têm abrigo, a companhia uns dos outros (o que não é pouco
para estes idosos, cujo círculo de relações se estreita cada vez mais), e a
sensação de estarem lutando, unidos, por uma causa grandiosa. A permanência da
arte caligráfica, diz Alcebíades, um dos fundadores do sindicato, é condição de
sobrevivência para nossa cultura. Os outros, sorvendo o aguado chá, concordam,
mas não poucos deixam de lembrar a época em que a agremiação oferecia a seus
associados opíparos jantares regados a vinho.
O tempo custa a passar na assembléia permanente. Esgotada a
discussão sobre as reivindicações (que variam, desde a extinção pura e simples
da datilografia até a solicitação de auxílio ao governo e às entidades
beneficentes), o coordenador procura levar a conversa para outros tópicos – e
sem demora, pois sabe que nada é mais terrível e ameaçador para os calígrafos
do que o silêncio absoluto, aquele silêncio que não é rompido pelo rascar de
penas sobre o papel. De modo que a agenda dos trabalhos prevê também discussões
técnicas e relatos de experiências pessoais.
Estilos de caligrafia são analisados e comparados; as
surpreendentes modificações surgidas quando do advento da pena de aço são
debatidas. As recordações são muitas. Ainda lembro, diz Horácio, a primeira
frase que escrevi como calígrafo: e isto acima de tudo: sê fiel a ti mesmo. É
de Shakespeare. Alguém hoje em dia sabe quem foi Shakespeare? Alguém conhece o
trabalho do imortal Bardo de Avon? Hein? Respondam-me, companheiros: vocês
creem que os jovens de hoje dão importância a essas coisas?
Ninguém
contesta; não é necessário. Honório quer apenas desabafar, e os calígrafos
ouvem-no em silêncio. Os que crêem que caligrafia e Shakespeare são coisas
diferentes, e que não se deve intimidar o público com autores britânicos,
guardam para si tais restrições. O momento não permite divergências, nem mesmo
quanto a assuntos de menor importância. União – tal como diz a Carta de
Princípios do Sindicato – deve ser o objetivo de todos. É por isso que Almeida
não verbaliza suas críticas em relação ao trabalho de Valentim. Jamais diria em
público aquilo que consta às fls. 7 de seu diário: “OM de Valentim parece camelo no
deserto”. Há respeito entre eles; ainda que pertençam a diferentes escolas,
reconhecem que o pluralismo é condição de sobrevivência para a caligrafia.
Sempre
preferi o R, diz
Evilásio, ou mesmo o W – talvez porque me permitiam traçar
caprichosas volutas muito de acordo com meu temperamento barroco. Mas então
descobri o i, isto
mesmo, o i minúsculo, e foi uma revelação. A
modesta simplicidade desta letra! E o ponto, suspenso no espaço! O ponto,
acreditem, me fascinou. Creio ter encontrado nele o sentido maior da
caligrafia. Porque enquanto alguns – meu próprio filho, por exemplo – exageram
o que chamam de “pingo do i”, chegando a representá-lo como um pequeno círculo,
eu concluí, num momento de profunda introspecção, que deveria dirigir meu
esforço no sentido inverso; isto é, reduzir o ponto a dimensões mínimas. Na
verdade, o ponto não tem dimensão alguma, como se sabe. O número de pontos é
infinito. Invisível, onipresente. Seria o ponto Deus, ou seria Deus um ponto?
Para aceitar tal idéia, eu teria de ser aniquilado por ela; isto é, eu só
poderia conceber o ponto no exato momento de minha completa extinção. Não
estava preparado para isto, nem estou, por isso é que continuo colocando o
ponto no i, ainda que
para fazê-lo limite-me a tocar de leve o papel com o bico da pena. Um gesto
muito contido, sem dúvida, mas um gesto. E aos que pensam que a caligrafia
nasce de gestos, afirmo com toda a convicção: a verdadeira caligrafia
caracteriza-se por inação total; ela é antes virtual do que real.
– Deus – conclui Evilásio – é o grande calígrafo.
Dizem, sussurra Marcondes para os que estão perto, que eles
agora têm aparelhos eletrônicos que captam os sons de voz e os transformam em
escrita. Não acredito, responde o amargo, incrédulo Amâncio, que tenham chegado
a tal ponto. E Rebelo: eu já esperava por uma coisa destas. A máquina de
escrever deu início a uma trajetória que conduziria inevitavelmente ao
desastre. O tabulador nada mais faz que acelerar este fim. Do que discorda o
calígrafo Rosálio. Não é contrário ao progresso; tem até um interessante
projeto, que é o de traçar letras no céu, utilizando, ele próprio (para isto
terá de ser treinado, mas não se importa, afirma que se submeterá a qualquer
coisa para concretizar seu sonho), um avião da esquadrilha da fumaça. Aos que
vêem nisto uma traição à arte da caligrafia, retruca: a mão que maneja
delicadamente a pena é a mesma que segura firme o manche do avião. Seu único
problema, na verdade, é a vertigem das alturas, que tem desde a infância e que,
segundo os especialistas, é incurável.
O
calígrafo Inácio corresponde-se há muito tempo com uma moça cujo nome encontrou
em “Correio do Amor”, popular seção de um grande jornal. À primeira carta, ela
se declarou apaixonada pela letra de Inácio: “A maneira como cortas o T evidencia um espírito enérgico; as
suaves curvas do teu S,
um coração carinhoso”. Inácio chora ao ler estas missivas, mas decidiu que
jamais se encontrará com a moça. Seu amor subsistirá apenas em manuscritos.
Chega Feijó. Como sempre, é o último; e, como sempre, vem
sorrindo, superior. Tem boas razões para isto. De todos os membros do
sindicato, é o único que tem trabalho assegurado. A cada quatro anos,
compete-lhe escrever o nome do governador eleito num diploma especial. É uma
tarefa para a qual prepara-se cuidadosamente, inclusive com exercícios físicos
e dieta. Pagam-lhe bem e o tratam com deferência, mas Feijó tem notado que os
nomes dos governadores são cada vez menores; suspeita que isto não seja produto
do acaso, mas sim de uma conspiração à qual os radicais não estão alheios.
E se
reativássemos a profissão, indaga de repente Alonso (que se gaba do seu
espírito empresarial); por exemplo, colocando anúncios no jornal: Sua amada não resistirá a
uma carta escrita com bela caligrafia. Alonso planeja também cursos
dirigidos a vários segmentos da sociedade. Fala em caligrafia política, em
caligrafia executiva, em caligrafia proletária. Mercedes, a única mulher do
sindicato, tem uma séria acusação a fazer contra os grafologistas: foram eles,
sustenta, que desmoralizaram nossa profissão, ao disseminarem a idéia de que a
letra é reveladora do caráter. Precisamos introduzir no currículo escolar, diz,
a noção de que a caligrafia une os homens.
O Sindicato dos Calígrafos fica num velho casarão, na parte
mais antiga da cidade. Trata-se de um legado de Abelardo, calígrafo de fama
internacional (chegou a preparar documentos para a monarquia belga). Dias
gloriosos, aqueles! À época, os calígrafos constituíam-se em famosa Irmandade.
O sindicato surgiu posteriormente, quando as oportunidades de trabalho
começaram a escassear. As reuniões, lembra Damião, eram verdadeiras
celebrações. Os calígrafos, vestidos a rigor, chegavam à sede, feericamente
iluminada, acompanhados de suas esposas e filhos. A sessão iniciava-se
pontualmente às vinte horas. A ata da reunião anterior – manuscrita,
naturalmente; redigi-la era uma honra que os calígrafos disputavam – passava de
mão em mão, mais para ser admirada (ou desprezada) do que comentada. Em
seguida, a orquestra tocava o hino dos calígrafos (“Com serifas e volutas mil/
Traço à pena o nome do meu Brasil/ Enquanto no céu, do mais puro anil…” etc.)
Brindava-se com champanhe importado; era servido o jantar – truta ou salmão ou
lagosta e, no final, uma torta em que a frase “Viva a Caligrafia!” tinha sido
traçada com creme. E depois vinha o baile, sempre animado. Antes das cinco da
manhã ninguém se retirava. Bons tempos, suspira o calígrafo Moura. Tempos que
não voltarão, completa o calígrafo Felipe (mesmo brigados, estão solidários na
mágoa).
– Fanti! – grita o calígrafo Reginaldo. – Fanti de Ferrara!
Os outros
se olham. Sabem a que ele se refere: ao Fanti de Ferrara, que em 1514
introduziu o método geométrico na caligrafia gótica. Sabem que Reginaldo possui
um valiosíssimo exemplar da Theorica
et practica perspicassimi Sigromundi de Fantis. De modo scribendi fabricandique
omnes litterarum species, editado em Veneza. Mas como Reginaldo não
empresta o livro, ignoram deliberadamente a provocação. O calígrafo Guilherme
muda de assunto: caligrafia, afirma, é a arte da bela escrita. É a liberdade,
prossegue, inspirado, conjugada à disciplina. É o passado falando ao nosso
coração. Tudo isso é muito bonito, murmuram dois ou três calígrafos, mas – e as
leis trabalhistas?
Nada temos
a ver, sustenta o calígrafo Ludovico, com esta nova classe, a dos digitadores.
Se com alguém temos afinidade, é com aqueles monges que, no silêncio de seus
monastérios, copiavam textos em caligrafia gótica e com delicadas iluminuras. O
que, acrescenta, abrupto, o calígrafo Arthur, era também uma proteção
contra a fraude: mais complicada a letra, mais difícil era falsificar uma bula
papal. Esta inopinada intervenção faz calar o calígrafo Ludovico. Não gosta que
lhe recordem os aspectos práticos da arte. Sabe-se que o papa Eugênio IV mandou
reservar um tipo especial de caligrafia – cursiva! – para os documentos
escritos rapidamente – brevi
manu – de onde o nome de breves. Breves! Breves, numa
arte caracterizada pela lentidão! Igualmente é de lamentar que o padre Pacioli
– um amigo, incrível!, de Leonardo da Vinci – tenha feito estudos sobre a
geometria das letras. Como se fosse possível comparar sentimentos com quadrados
e hexágonos!
Os
calígrafos Raimundo e Koch empenham-se numa animada discussão. Raimundo acusa
Colbert, ministro das Finanças de Luís XIV, de ter decretado o fim do gótico
quando recomendou a seus funcionários que adotassem a escrita conhecida como financière: já era o mau
gosto da burguesia se impondo, brada. Koch, numa voz contida (na qual percebem-se,
porém, ocultas vibrações de ressentimento), pondera que o gótico continha o
germe de sua destruição. Por causa da angulosidade: a vida, sustenta Koch,
prefere curvas suaves. Não é golpeando o papel com a pena que imitaremos o
fluxo de existência. Dois ou três calígrafos aplaudem timidamente. Raimundo
cala-se. No fundo, porém, acredita em voltar ao gótico como forma de
projetar-se para o alto, lá onde brilham as estrelas. É da mesma opinião o
calígrafo Ronildo; para ele, a era do Rei Sol foi ruinosa para a caligrafia, em
que pesem os esforços de Danoiselet e Rousselot. Hoje, dizem que ter caráter é
mais importante que ser legível, mas – e neste ponto a voz de Ronildo treme com
incontida indignação – não será isto uma reductio
ad absurdum?
O que é elegância?, pergunta o
calígrafo Dimone. E ele mesmo responde: é a oportunidade dos adornos.
Penso na
trajetória de minha vida como se fosse o traçado de uma letra, diz o calígrafo
Epaminondas. Da letra l,
mais precisamente. Eu subi; quando estava no alto, fiz uma volta e desci;
cheguei ao ponto mais baixo e aguardo pela derradeira, ainda que pequena,
inflexão para cima.
– Às
vezes me pergunto – suspira – se eu não deveria me chamar Luís. Luís com l minúsculo.
Ninguém lhe responde. Mesmo porque é tarde. Um a um os
calígrafos levantam-se e se vão, para suas humildes casas. No dia seguinte
retornarão. Não há vida fora da assembléia permanente. Não há vida fora da
caligrafia.
Moacyr
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