Subindo aqui a avenida que dá para os
fundos de minha casa, cumprimentando os passantes, parando para ver os meninos
jogando bola no parque e assobiando uma musiquinha cujo nome não sei mas que,
nesta manhã, não me sai da cabeça, detenho-me na Pastelaria Brasil-América,
para comprar uma caixa de fósforos. Não sou muito chegado a essa pastelaria —
cuja única qualidade (e, assim mesmo, questionável) é ser perto aqui de casa —
porque as iscas que nela servem são de baixa qualidade e há um irmãozinho
lusitano que nela trabalha que gosta de me gozar. Mas esqueci o isqueiro em
casa, tenho de comprar fósforos. Encontro o mesmo irmãozinho, ele me diz o
preço, eu me confundo todo com as moedas, ele me goza outra vez. “Um dia eu
ainda lhe pego”, penso eu, fingindo que não ligo, mas muito mal-intencionado
intimamente.
E prossigo
avenida Estados Unidos acima, para pegar o metrô, que aqui se chama metro. O
dia não está nem quente nem frio, há um belo sol, as sacadas dos apartamentos
estão todas floridas e vou ao Rossio em missão de vagabundagem. Acho-me um
cidadão lisboeta e me vejo tomado de um certo sentimento de orgulho, ao cruzar
com minhas concidadãs, a maioria plenamente imbuída do mesmo espírito
primaveril e portanto usando umas blusinhas leves por cima da pele e balançando
todos os tipos de simpáticos e risonhos peitinhos, como é — o Senhor seja
louvado — do hábito de tantas raparigas aqui. Respiro fundo, paro um pouco na
subida, aproveito para prestar atenção na moça que de lá vem, usando um
chapeuzinho e uma espécie de colete em cima da tal blusinha, a qual mal esconde
os tais peitinhos. Decido que não será necessária uma discrição excessiva,
consideradas as circunstancias atmosféricas tão amenas e mais a minha
exuberante lusofilia, de forma que, com tanta elegância quanto é possível aos
baianos, ponho as mãos nos bolsos do casaco, detenho o passo e espero a moça
passar, com interesse. Ela ajeita a mecha do cabelo que lhe sai por um lado do
chapéu, sorri vagamente como se estivesse lembrando de repente alguma coisa
agradável e passa triunfal a meu lado, reconhecendo tácita e cordialmente o meu
silencioso cumprimento e meus encômios à boa forma de seu equipamento, tão
afavelmente mostrado. Uma safadeza minúscula e inocente, que não me deixa
remorsos e me faz achar o resto do caminho até o metro muito agradável. Safadezazinha,
aliás, que, combinada com as milhares de outras safadezazinhas que, nesta manhã
ensolarada e irresponsável, haverão de estar sendo cometidas em toda a nossa
querida Lisboa, deixam a pessoa que respira fundo e não tem mal na consciência,
deixam essa pessoa — como direi? — assim meio peralta.
Minha estação
é a estação de Roma. O metro é pequeno e não mete medo, como o de Nova Iorque.
Nem tem primeira classe, como tinha o de Paris antes de Mitterrand. Na gare,
giro rapidamente o corpo para cumprimentar a moça que tripula a lojinha de
fazer cópias xerox de que sou freguês. “Como passou?”, inquiro na minha melhor
forma lusitana. “Olá, como está?”, responde ela, rindo com um certo encanto
tímido. Por alguma razão, considero esse episódio entusiasmante, resolvo
comemorar, apresento cem escudos ao bilheteiro e compro uma caderneta! Uma
caderneta é um conjunto de bilhetes de metro que você pode usar a qualquer
tempo e que saem a dez escudos, quando o bilhete individual custa quinze.
Considero-me um mago das finanças por haver concebido tão fantástica economia.
Dentro do
metro, a única cautela que cabe observar é, se sentar, ficar atento para
senhoras grávidas e outras pessoas a quem a lei e o costume garantem assento.
Se a gente não se levantar imediatamente, ao ingresso de uma dessas pessoas, a
reação do público feminino, principalmente da parte de senhoras de preto e de
bigode agudamente parecidas com uma tia-avó nossa que morreu antes de termos
idade para realmente apreciá-la, é das mais sonoras. Há discursos,
estabelecem-se debates. Como o meu sotaque, suspeito eu, é considerado
primitivo, procuro abster-me e, além disso, não quero envergonhar Ruy Barbosa —
o que é, como se sabe, obrigação de todo baiano. Logo no Areeiro entra o cego
da ocarina, que, acompanhado por um senhor de boné e aspecto grave, toca seu
instrumento com aquele ar destacado e longínquo dos cegos de feira do Nordeste,
mas alguma coisa em sua expressão, alguma coisa desamparada e ansiosa, como
também há nos cegos de feira do Nordeste, alguma coisa nos dedos que cobrem e
descobrem rapidamente os buracos de barro da ocarina, como há nos dedos
nordestinos que percutem as cordas das violas, alguma coisa impõe uma
reverência instantânea, um ar de contrição, que a gente nota se espalhar como
tinta por um mata-borrão, entre os passageiros. E depois há o som que ele tira
dessa ocarina, estranhamente entrelaçado com o barulho do trem correndo por
aqueles túneis de Lisboa, um som meio árabe, meio sertanejo, meio misturado com
tantas memórias absurdas. As mulheres remexem nas bolsas, à espera de que
passem o músico cego e seu digno auxiliar, que utiliza o boné pan recolher as
moedas. Os homens metem as mãos nos bolsos, esperam disfarçando, como se
houvesse alguma paisagem para ver através das janelas. O trem vai chegar a
Arroios, chia numa curva e o cego, indiferente ao gemido metálico das rodas,
multiplica repentinamente as notas da ocarina, causando emoção visível entre os
passageiros, emoção que ele não enxerga mas presume, o que se depreende de um esboço
de sorriso orgulhoso, que deixa passar pelos cantos da boca ocupada em soprar.
Olha-se assim em torno, não é o metro de Lisboa, são os fantasmas amáveis de
nossas infâncias, são sons já ouvidos, momentos já vividos, saudades
resgatadas, somos nós. Ali parados, segurando uma alça no metro de Lisboa,
coisas ancestrais, nós. Disfarçando também, cato uma moeda, enfio-a no boné
meio dobrado do assistente do cego. Cego este que sente a chegada à estação de
Arroios, tem mais encantamentos a obrar em outras partes, e então sai
acompanhando seu auxiliar e segue pelas escadas da gare acima, deixando uma
trilha de sons da ocarina como uma fita espiralada no ar, que, mesmo depois de
fechadas; as portas e retomada a nossa marcha, ainda persiste em nossa pequena
comunidade.
Meu lugar
favorito de Lisboa, naturalmente, é o Rossio, onde invariavelmente desemboco
pela mesma saída do metro, em cima da Suíça, uma pastelaria de dezenas de mesas
na calçada, em que as pessoas passam o dia todo tomando um cafezinho (uma
“bica”) mordiscando bolinhos e paquerando as nórdicas que ali vêm fazer a
praça. Graves decisões: vou na direção do Café Nicola ou passo antes pela Praça
da Figueira? Nós, vagabundos, temos problemas como quaisquer outros mortais.
Pela Praça da Figueira, eu pego a rua da Madalena, onde se situa minha
ervanária favorita. Julgo de bom alvitre passar pela ervanária,afinal há muito
tempo que não vou lá, preciso saber das novidades. E, assim, imerso num
incrível rebuliço de gente, cheiros, cores e ruídos, marcho para a Praça da
Figueira. Há um camelô muito sério, demonstrando um fantástico cortador de
vidro. Pega laminas de vidro de uma caixa e, conversando em alta velocidade,
corta fatias de vidro como alguém tiraria rodelas de uma cenoura. “Quanto é o
cortador aí?” pergunto eu, subitamente, achando que não posso passar sem um
cortador de vidro — não há coisa mais indispensável para um escritor. São 150
escudos, pago sem discutir e vou de cortador em punho para a ervanária, cujo
cheiro indescritível já começo a sentir desde a esquina. Lembro os prospectos:
há chás e tisanas para tudo, inclusive para duas doenças que pretendo divulgar
bastante, quando voltar ao Brasil: a fraqueza nervosa (da qual já padeço,
esporadicamente) e o afrontamento de senhoras. Ainda não consegui informações
precisas a respeito do que é o afrontamento de senhoras e tive vergonha de
perguntar ao caixeiro meu amigo, na ervanária. Mas qualquer um concordará que
se trata de uma enfermidade a ser gravemente considerada. Resolvo levar alguns
sacos de chá para afrontamento de senhoras, quando voltar ao Brasil, em meio a
minha bagagem de ervas milagrosas, com as quais pretendo receitar todo mundo.
Na ervanária, não muitas novidades, a não ser umas pílulas de alho de
fabricação revolucionária, que o caixeiro me recomenda com ênfase. Mas, as
antigas? — pergunto eu, hesitante. Continuam boas, responde ele, mas nestas cá
vê-se o óleo através das cápsulas. De fato, vê-se o óleo. É um argumento
irresistível. Compro duas caixas, umas certas pílulas de pau d’arco, uma
garrafinha de extrato de ginseng, mais umas miudezas e, com meu saquinho, volto
pausadamente à Praça da Figueira, parando para olhar as vitrinas (as montras,
perdão) de comida, arrumadas das maneiras mais caleidoscópicas pelas ruelas em
volta do Castelo de São Jorge: sapatas, amêijoas, santolas, chamuças, carapaus,
fiambres, chouriços, ginjinhas. De vez em quando, eu entro num desses
estabelecimentos, só para ver a exposição das comilanças. Eles vêm ver o que eu
quero e, quando explico que estou ali somente para uma espécie de fruir
estético, eles até me oferecem, de vez em quando, uma excursão turística pela
despensa e pela cozinha. Marco mentalmente o meu almoço: vou ao restaurante de
Mimi, no Parque Meyer, comer na varanda, entre as plantas e alguns velhos
atores de teatro de revista, conversando com os gatos e tomando o vinho da
casa.
Mas isto só
depois, porque me emociona estar aqui de volta ao Rossio, na boca da Baixa e do
Chiado, esperando o sinal abrir e os ônibus de dois andares pararem de querer me
atropelar. Gente que não acaba mais e meus amigos da porta do Café Nicola e do
Pic-Nic — os angolanos, moçambicanos cabo-verdeanos e guineenses, todos
vestidos de Bob Marley e todos muito loucos, transando haxixe. O comércio não é
tão discreto como se esperaria, dada a sua natureza, digamos, delicada.
Brazuca, um angolano assim chamado porque morou muito tempo no Brasil (de onde
foi, lamentavelmente, expulso devido “a um problemazito de uma maconhazita”, me
cumprimenta amavelmente. Os negócios devem ir bem, ele está de blusão novo e
passado, barba feita e transas com fitinhas impecáveis. “Não quer lá um
chuculate, homem?”, me pergunta ele, sacudindo na minha cara um pedaço de
haxixe deste tamanho. “Que é isso, Brazuca?”, digo eu. “Olhe os homens aí”.Aproveita
— responde ele como se não me tivesse ouvido — que é coisa finíssima que chegou
hoje do Marrocos. “Depois, Brazuca, depois”, respondo eu levemente embaraçado,
inclusive porque, junto a mim, um senhor que me parece hindu, muito sério e de
paletó e gravata, reclama com outro transeiro do tamanho do pedaço de
“chuculate” que acaba de lhe ser vendido por mil escudos. “Mas um conto, isto,
um conto!”, diz o senhor hindu, obviamente achando tudo um absurdo e exibindo
aos passantes a prova de sua alegação, diante do sorriso desdentado do seu
transeiro. “Um conto, isto!”, repete o senhor hindu, mostrando a mim o
pedacinho do chuculate. De fato, achei pequeno, mas não considerei apropriado
continuar a envolver-me no processo em andamento, de forma que me fiz de desentendido
e prossegui na direção da rua do Carmo. Lembrei que tinha compromissos
inadiáveis: curtir as livrarias, comprar cigarros na tabacaria de um feroz
comunista amigo meu, tomar uma cerveja n’A Brasileira e dedicar algum tempo a
apenas me sentir maravilhosamente bem ali mesmo naquele formigueiro da Baixa.
Lembrei Dorival Caymmi, uma vez explicando, antes de a Bahia haver sido
destruída como Lisboa, felizmente, não foi — e como não foi, em tantos
sentidos! —, umas certas cores uns certos ares que era imperativo ficar
curtindo, em vez de trabalhar. Não há tempo para trabalhar, dizia ele, a pessoa
fica muito ocupada vivendo.
Pois então,
pois cá tenho vivido muito em Portugal. Não propriamente vendo coisas, embora
haja, é claro, coisas para ver, mas sentindo. Não propriamente aprendendo, mas
me acrescentando de tantas formas sutis e fortes, por tantas vias antes
insuspeitadas. E então, sobraçando minhas ervas, meus livros, meus postais
velhos, meu cortador de vidro, desço de novo ao Rossio. Vou caminhar pela
avenida da Liberdade, em ponderado passeio para o Parque Meyer. O dia fica cada
vez mais luminoso, só consigo pensar em coisas boas. A velha estação dos
comboios parece uma catedral, a avenida se abre como se fosse haver uma parada,
eu adoro Lisboa. E, se você não aproveitar a primeira chance que tiver para vir
curtir esta minha cidade, você é bobo.
João Ubaldo Ribeiro
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