Em um século dominado pelo virtual e pelo
instantâneo, que poder resta à literatura? Ao contrário das imagens, que nos
jogam para a fora e para as superfícies, a literatura nos joga para dentro. Ao
contrário da realidade virtual, que é compartilhada e se baseia na interação, a
literatura é um ato solitário, nos aprisiona na introspecção. Ao contrário do
mundo instantâneo em que vivemos, dominado pelo “tempo real” e pela rapidez, a
literatura é lenta, é indiferente às pressões do tempo, ignora o imediato e as
circunstâncias.
Vivemos em um mundo
dominado pelas respostas enfáticas e poderosas, enquanto a literatura se limite
a gaguejar perguntas frágeis e vagas. A literatura, portanto, parece caminhar
na contramão do contemporâneo. Enquanto o mundo se expande, se reproduz e acelera,
a literatura se contrai, pedindo que paremos para um mergulho “sem resultados”
em nosso próprio interior. Sim: a literatura - no sentido prático - é inútil.
Mas ela apenas parece inútil.
A literatura não serve
para nada _ é o que se pensa. A indústria editorial tende a reduzi-la a um
entretenimento para a beira de piscinas e as salas de espera dos aeroportos. De
outro lado, a universidade _ em uma direção oposta, mas igualmente improdutiva
_ transforma a literatura em uma "especialidade", destinada apenas ao
gozo dos pesquisadores e dos doutores. Vou dizer com todas as letras: são duas
formas de matá-la. A primeira, por banalização. A segunda, por um esfriamento
que a asfixia. Nos dois casos, a literatura perde sua potência. Tanto quando é
vista como “distração”, quanto quando é vista como “objeto de estudos”, a
literatura perde o principal: seu poder de interrogar, interferir e
desestabilizar a existência.
Contudo, desde os
gregos, a literatura conserva um poder que não é de mais ninguém. Ela lança o
sujeito de volta para dentro de si e o leva a encarar o horror, as crueldades,
a imensa instabilidade e o igualmente imenso vazio que carregamos em nosso
espírito. Somos seres “normais”, como nos orgulhamos de dizer. Cultivamos
nossos hábitos, manias e padrões. Emprestamos um grande valor à repetição e ao
Mesmo. Acreditamos que somos donos de nós mesmos!
Mas leia Dostoievski,
leia Kafka, leia Pessoa, leia Clarice _ e você verá que rombo se abre em seu
espírito. Verá o quanto tudo isso é mentiroso. Vivemos imersos em um grande mar
que chamamos de realidade, mas que _ a literatura desmascara isso _ não passa
de ilusão. A “realidade” é apenas um pacto que fazemos entre nós para suportar
o “real”. A realidade é norma, é contrato, é repetição, ela é o conhecido e o
previsível. O real, ao contrário, é instabilidade, surpresa, desassossego. O
real é o estranho.
É nas frestas do real,
como uma erva daninha, que a literatura nasce. A literatura não é um
divertimento; tampouco é um saber especializado. Ela é um instrumento, precário
e sutil, de interrogar a vida. Desloca nossas certezas, transformando-as em
incertezas. Em vez de nos oferecer respostas, nos faz novas perguntas _ desagradáveis
e perturbadoras. Leia “Crime e castigo”, “O castelo”, o “Livro do desassossego”,
ou “A paixão segundo GH”. Se você ler para valer, se neles mergulhar como quem
se lança em um abismo, e a literatura é um abismo, sairá da leitura
transformado e atordoado, sairá um outro homem, ainda que no corpo do mesmo
homem.
A literatura é, antes
de tudo, uma máquina de transformação. Se você não deseja se modificar; se não
pretende correr riscos; se teme as perguntas que não comportam respostas _
então, eu aconselho, afaste-se da literatura. A literatura é, sim, perigosa,
porque tem o poder de nos desestabilizar e desassossegar. Se você aprecia sua
vida banal e rotineira, fuja! Ao contrário, se você sente um grande incômodo
com o mundo, se você se incomoda com o tédio das imagens e da repetição, se
você deseja se modificar e modificar o pequeno mundo que o cerca, então leia.
A literatura não tem o
poder dos mísseis, dos exércitos e das grandes redes de informação. Seu poder é
limitado: é subjetivo. Ao lançá-lo para dentro, e não para fora, ela se
infiltra, como um veneno, nas pequenas frestas de seu espírito. Mas, nele
instalada pelo ato da leitura, que escândalos, que estragos, mas também que
descobertas e que surpresas ela pode deflagrar!
Não é preciso ser um
especialista para ler uma ficção. Não é preciso ostentar títulos, apresentar
currículos, ou credenciais. A literatura é para todos. Dizendo melhor: é para
os corajosos ou, pelo menos, para aqueles que ainda valorizam a coragem. Se
você deseja sair de si e experimentar novas possibilidades do existir, então
leia. Se deseja correr riscos e perder-se um pouco no instável e no precário,
leia. Se você acha a vida insuficiente e deseja o inesperado, leia. Este é o
pequeno, mas também precioso, poder da literatura.
José Castello
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