O encarregado do posto de lubrificação, sozinho àquela
hora, estranhou os vultos que vinham a pé, na estrada. O sol nascia; apenas
alguns caminhões passavam, transbordando de legumes. Os três homens caminhavam
sem pressa, no leito da rodovia, indiferentes ao risco. Motoristas jogavam-lhes
palavrões, sem que eles se importassem. Estavam vestidos de maneira inabitual,
um de vermelho, outro de verde, outro de roxo; as roupas se assemelhavam a
túnicas, dessas que o rapaz da lubrificação estava acostumado a apreciar em
filmes de Victor Mature e vira uma só vez na vida real, quando passou por ali,
rumo a São Paulo, o carro do embaixador da Índia, e uma jovem morena descera
para contemplar a paisagem.
Como os estranhos parassem
diante do posto, teve vontade de aproximar-se e perguntar o que desejavam. Mas
deteve-se. Eram três, ele estava desarmado, não sabia que espécie de gente era
aquela.
O mais alto deles ficava ainda
mais esguio olhando para o céu, como quem indaga o tempo. Os outros miravam um
ponto vago, esperando decerto que ele comunicasse o resultado da inspeção. Não
houve palavras, entretanto. O homem comprido, de vermelho, baixou a cabeça e
fitou por sua vez os companheiros. Entendiam-se pelo olhar, era evidente. Não
careciam de palavras, ou temiam empregá-las. Tratava-se, realmente, de
indivíduos suspeitos.
Mas a suspeição que irradiavam
era de natureza especial. O rapaz do posto — já é tempo de chamá-lo Marcos,
pois assim fora batizado e registrado — imaginara no primeiro instante que
fossem ladrões. Depois, pela excentricidade dos trajes, supusera-os
simplesmente loucos. Agora percebia neles a majestade, ao mesmo tempo gloriosa
e simples, de personagens de histórias da infância, no Nordeste, quando Carlos
Magno ia com ele morro abaixo morro acima, e Rolando e d. Pedro i enchiam o ar
com o retintim de espadas românticas.
Não sabendo como falar-lhes,
nem recebendo deles qualquer pedido, Marcos estendeu-lhes um copo d’água, que
um bebeu devagar, embora o rosto fosse sede pura. Os outros dois fizeram o
mesmo, sucessivamente. Agradeceram com os olhos, e foram-se.
Ao chegarem os colegas de
trabalho, Marcos, pressentindo a importância do encontro, não quis contar-lhes
nada. E eles vinham justamente fazendo troça dos tipos encontrados em caminho,
que davam dor de cabeça aos motoristas. Nunca se xingara tanto numa estrada do
Rio. Pois os três caminhavam para o Rio de Janeiro, sempre consultando o
espaço.
O ônibus freou brusco, para
não amassá-los. O motorista quis descer justamente para amassá-los, na raça.
Entre os passageiros, as definições variavam: eram contratados de casa
comercial, em promoção de festas; tinham bebido demais e erravam a esmo; não,
são figuras de rancho ensaiando para Carnaval; ou palhaços de circo,
descansando. Fugiram do hospício; são doidos mansos; pois sim, experimenta
bulir com eles. Desceram do foguete interplanetário, numa praia fluminense.
Marcianos? Isso não: uniformes russos, meu velho.
Marcos trabalhou o dia todo
com o pensamento naqueles três homens diferentes que, sem nada falar, lhe
insinuaram muitas coisas. Não eram propriamente nobres, se bem que na poeira
das vestes se entremostrasse nobreza. Em seu entendimento singelo, Marcos
apreendia o recolhimento deles, sentia-os empenhados numa busca infatigável e
serena, que não se faz por meio de perguntas. Eram ridículos talvez, exatamente
porque não tinham qualquer relação com o lugar por onde passavam, não se
serviam de nada que hoje em dia se usa para viajar. De onde vinham, por que
vinham, o empregado de um posto de gasolina seria incapaz de saber. Mas sabia
intuitivamente que levavam consigo uma alta obrigação.
No dia seguinte, Marcos leu no
jornal que foram presos na Penha três indivíduos trajados de modo grotesco, ao
atravessarem a linha férrea. Pareciam estrangeiros, nada carregavam, nada
souberam responder. O delegado solicitara um intérprete da Polícia Técnica, mas
não fora atendido porque era meio- feriado, com expediente suspenso para que
toda gente fosse assistir, no Maracanã, com a presença das autoridades, à festa
da recepção simbólica aos Três Reis Magos.
Carlos
Drummond de Andrade
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