Quando
acordei no hospital, depois de sete dias em coma, não conseguia me lembrar do
chute, nem do impacto da bola contra a minha cabeça, nem da cabeça batendo no
chão de cimento. Eu cursava o sexto ano do ensino fundamental e o acidente aconteceu
na aula de Educação Física.
“Vamos treinar cobrança de pênalti”, disse Ruy, professor querido, apaixonado por esportes e literatura. “Antes de chutar, cada um de vocês pegará um papel dentro deste copo plástico e vai ler bem alto, o mais alto possível, a palavra sorteada. Dentro do pote vocês vão encontrar os sete pecados capitais. Ficou claro?”
Pecados capitais? Não, a molecada estava confusa, mas deixou por isso mesmo e eu fui para o meu lugar cativo, o gol. Como no filme Sociedade dos Poetas Mortos, os garotos tiravam os papeizinhos, gritavam o que estava escrito e bomba no gol. Na quadra ao lado – porque naquele tempo era assim - as meninas jogavam vôlei.
“Avareza”, gritava alguém antes de chutar e eu defendia a avareza. Defendi também a inveja, a gula, a luxúria... Uma por uma das cobranças - no canto direito, no esquerdo, no alto, no ângulo - eu pegava. O vento desviou para longe os chutes indefensáveis. Mas o último tiro coube ao Rômulo, o brutamonte, e como já não havia mais papéis no pote, o professor falou: “Vai, Rômulo, chuta a vida”.
Acontece que o Rômulo era muito revoltado com a vida e chutou a bola com toda a ira que alguém pode carregar dentro de si. Ela veio tão rápida, tão forte e tão certeira que eu não senti nada, nenhuma dor, não percebi a escuridão.
Dias depois, o professor Ruy foi me ver no hospital e deixou de presente um livro do Fernando Sabino, seu cronista favorito. Devorei o livro do começo ao fim e tornei-me um leitor fascinado pelo som das frases bem escritas. Não gosto de histórias com lição de moral, mas esta tem me ajudado nos momentos difíceis e talvez seja importante dizê-la: às vezes, uma bolada da vida, bolada que te faz cair e quase morrer, pode ser uma coisa boa.
Fernando Evangelista
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