Sabendo que a ele caberia determinar seus movimentos e controlar sua fome, o escritor começou lentamente a materializar o tigre. Não se preocupou com descrições de pêlo ou patas. Preferiu introduzir a fera pelo cheiro. E o texto impregnou-se do bafo carnívoro, que parecia exalar por entre as linhas.
Depois,
com cuidado, foi aumentando a estranheza da presença do tigre na sala rococó em
que havia decidido localizá-lo. De uma palavra a outro, o felino movia-se
irresistível, farejando o dourado de uma poltrona, roçando o dorso rajado
contra a perna de uma papeleira.
Em
vez de escrever um salto, o escritor transmitiu a sensação de movimento com uma
frase curta. Em vez de imitar o terrível miado, fez tilintar os cristais
acompanhando suas passadas. Assim, escolhendo o autor as palavras com o mesmo
sedoso cuidado com que sua personagem pisava nos tapetes persas, criava-se a
realidade antes inexistente.
O
quarto parágrafo pareceu ao escritor momento ideal para ordenar ao tigre que
subisse com as quatro patas sobre o tamborete de “petit-point”. E já a fera
aparentemente domesticada tencionava os músculos para obedecer quando, numa
rápida torção do corpo, lançou-se em direção oposta. Antes que chegasse a
vírgula, havia estraçalhado o sofá, derrubado a mesa com a estatueta de Sévres,
feito em tiras o tapete. Rosnados escapavam por entre letras e volutas. O tigre
apossava-se da sua natureza. Já não havia controle possível. O autor só podia
acompanhar-lhe a fúria, destruindo a golpes de palavras a bela decoração rococó
que havia tão prazerosamente construído, enquanto sua criatura crescia,
dominando o texto.
Impotente,
via aos poucos espalharem-se no papel cacos de móveis e porcelanas,
estilhaçar-se o grande espelho, cair por terra a moldura entalhada. Não havia
mais ali um animal exótico na sala de um palácio, mas um animal feroz em seu
campo de batalha.
O
escritor esperava tenso que o cansaço dominasse a fera, para que ele pudesse
retomar o domínio da narrativa, quando o viu virar-se na sua direção, baixar a
cabeça em que os olhos amarelos o encaravam, e lentamente avançar.
Antes
que pudesse fazer qualquer coisa, a enorme pata do tigre abatendo-se sobre ele
obrigou o texto ao ponto final.
Marina
Colasanti
Comentários
Postar um comentário