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Brincadeira



            

     Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
     - Eu sei de tudo.
     Depois de um silêncio, o outro disse:
     - Como é que você soube?
     - Não interessa. Sei de tudo.
     - Me faz um favor. Não espalha.
     - Vou pensar.
     - Por amor de Deus.
     - Está bem. Mas olhe lá, hein?
     Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.
     - Sei de tudo.
     - Co-como?
     - Sei de tudo.
     - Tudo o quê?
     - Você sabe.
     - Mas é impossível. Como é que você descobriu?
     A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
     - Alguém mais sabe?
     Outras se tornavam agressivas:
     - Está bem, você sabe. E daí?
     - Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
     - Se você contar para alguém, eu...
     - Depende de você.
     - De mim, como?
     - Se você andar na linha, eu não conto.
     - Certo.
     Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.
     - Eu sei de tudo.
     - Tudo o quê?
     - Você sabe.
     - Não sei. O que é que você sabe?
     - Não se faça de inocente.
     - Mas eu realmente não sei.
     - Vem com essa.
     - Você não sabe de nada.
     - Ah, quer dizer que existe alguma coisa para saber, mas eu é que não sei o que é?
     - Não existe nada.
     - Olha que eu vou espalhar...
     - Pode espalhar que é mentira.
     - Como é que você sabe o que eu vou espalhar?
     - Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
     - Está bem. Vou espalhar.
     Mas dali a pouco veio um telefonema.
     - Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre aquilo.
     - Aquilo o quê?
     - Você sabe.
     Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e sussurrava:
     - Você contou para alguém?
     - Ainda não.
     - Puxa. Obrigado.
     Com o tempo, ganhou reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por um amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.
     - Por que eu? - quis saber.
     - A posição é de muita responsabilidade - disse o amigo. Recomendei você.
     - Por quê?
     - Pela sua discrição.
     Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas unca abria a boca para falar de ninguém. Além de bem informado era gentleman. Até que recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
     - Sei de tudo.
     - Co-como?
     - Sei de tudo.
     - Tudo o quê?
     - Você sabe.
     Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu desaparecimento repentino. Investigaram. O que ele estava armando? Finalmente foi descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que uma noite vieram muitos carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que a voz que mais se ouvia era a dele, gritando:
     - Era brincadeira! Era brincadeira!
     Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
     Sabia demais.

Luis Fernando Veríssimo

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