Solomon saith: “There is no new thing upon
the
earth”. So that as Plato had an imagination,
“that all knowledge was but remembrance”; so
Solomon giveth his sentence, “that all novelty is
but oblivion”.
earth”. So that as Plato had an imagination,
“that all knowledge was but remembrance”; so
Solomon giveth his sentence, “that all novelty is
but oblivion”.
FRANCIS
BACON: Essays LVIII.
Em Londres, em princípios do mês de junho de 1929,
o antiquário Joseph Cartaphilus, de Esmirna, ofereceu à princesa de Lucinge os
seis volumes em quarto-menor (1715-172O) da Ilíada de Pope. A princesa
adquiriu-os; ao recebê-los, trocou algumas palavras com ele. Era; diz-nos, um
homem muito magro e terroso, de olhos apagados e barba cinzenta, de traços
singularmente vagos. Empregava com fluidez e ignorância as diversas línguas; em
poucos minutos, passou do francês ao inglês e do inglês a uma conjunção
enigmática de espanhol de Salonica e de português de Macau. Em outubro, a
princesa ouviu de um passageiro do Zeus que Cartaphilus havia morrido no mar,
ao regressar a Esmirna, e que o haviam enterrado na ilha de Ios. No último tomo
da Ilíada encontrou este manuscrito.
O original está escrito em inglês e é abundante em
latinismos. A versão que oferecemos é literal.
I
Que eu me lembre, meus trabalhos começaram em um
jardim de Tebas Hekatómpylos, quando Diocleciano era imperador. Militei (sem
glória) nas recentes guerras egípcias, sendo tribuno de uma legião que esteve
aquartelada em Berenice, diante do mar Vermelho: a febre e a magia consumiram
muitos homens que cobiçavam com magnanimidade o aço. Os mauritanos foram
vencidos; a terra, antes ocupada pelas cidades rebeldes, foi dedicada
eternamente aos deuses plutônicos; Alexandria, debelada, implorou em vão a
misericórdia de César; antes de um ano, as legiões alcançaram o triunfo, mas eu
mal consegui divisar a face de Marte. Essa privação me doeu e foi talvez a
causa de eu ter me lançado, por temerosos e extensos desertos, a descobrir a
secreta Cidade dos Imortais.
Meus trabalhos, como disse, começaram em um jardim
de Tebas. Toda essa noite não dormi, pois algo estava combatendo em meu
coração. Levantei-me pouco antes do amanhecer; meus escravos dormiam, a lua
tinha a mesma cor da infinita areia. Um cavaleiro vencido e ensangüentado vinha
do oriente. A uns passos de mim, caiu do cavalo. Com tênue voz insaciável,
perguntou-me em latim o nome do rio que banhava os muros da cidade.
Respondi-lhe que era o Egito, que as chuvas alimentam. “Outro é o rio que
persigo”, replicou com tristeza, “o rio secreto que purifica da morte os
homens”. Escuro sangue brotava de seu peito. Disse-me que sua pátria era uma
montanha que está do outro lado do Ganges e que nessa montanha se falava que,
se alguém caminhasse até o ocidente, onde o mundo se acaba, chegaria ao rio
cujas águas dão a imortalidade. Acrescentou que na margem ulterior se ergue a
Cidade dos Imortais, rica em baluartes e anfiteatros e templos. Antes do
amanhecer, morreu, mas determinei descobrir a cidade e seu rio. Interrogados
pelo verdugo, alguns prisioneiros mauritanos confirmaram a informação do viajante;
alguém lembrou a planície elísia, no fim da terra, onde a vida dos homens é
perdurável; outro, os cumes onde nasce o Pactolo, cujos moradores vivem um
século. Em Roma, conversei com filósofos que sentiram que prolongar a vida do
homem era prolongar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes. Ignoro se
acreditei alguma vez na Cidade dos Imortais: penso que então me bastou o
trabalho de procurá-la. Flávio, procônsul de Getúlia, entregou-me duzentos
soldados para a tarefa. Também recrutei mercenários, que se disseram
conhecedores dos caminhos e foram os primeiros a desertar.
Os fatos posteriores deformaram até o inextricável
a lembrança de nossas primeiras jornadas. Partimos de Arsinoe e entramos no
abrasado deserto. Atravessamos o país dos trogloditas, que devoram serpentes e
carecem do comércio da palavra; o dos garamantes da Líbia, que têm as mulheres
em comum e se nutrem de leões; o da tribo dos augilas, que só veneram o
Tártaro. Fatigamos outros desertos, onde é negra a areia, onde o viajante deve roubar
as horas da noite, pois o fervor do dia é intolerável. De longe divisei a
montanha que deu nome ao Oceano: em suas ladeiras cresce o eufórbio, que anula
os venenos; no cume, vivem os sátiros, nação de homens cruéis e rústicos,
inclinados à luxúria. Que essas regiões bárbaras, onde a terra é mãe de
monstros, pudessem abrigar em seu seio uma cidade famosa, a todos nos pareceu
inconcebível. Prosseguimos na marcha, pois teria sido uma desonra retroceder.
Alguns temerários dormiram com o rosto exposto à
lua; a febre os queimou; na água corrompida das cisternas outros beberam a loucura e a morte. Então, começaram as deserções; muito pouco depois, os motins. Para reprimi-los, não vacilei no exercício da severidade. Procedi corretamente, mas um centurião me advertiu que os sediciosos (ávidos por vingar a crucificação de um deles) tramavam minha morte. Fugi do acampamento, com os poucos soldados que me eram fiéis. No deserto, perdi-os entre os redemoinhos de areia e a vasta noite. Uma flecha cretense me lacerou. Por vários dias, errei sem encontrar água, ou por um só enorme dia multiplicado pelo sol, pela sede e pelo temor da sede. Deixei o caminho ao arbítrio de meu cavalo. Na aurora, a distância encrespou-se de pirâmides e de torres. Insuportavelmente, sonhei com um exíguo e nítido labirinto: no centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus olhos o viam, mas tão intrincadas e confusas eram as curvas que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.
lua; a febre os queimou; na água corrompida das cisternas outros beberam a loucura e a morte. Então, começaram as deserções; muito pouco depois, os motins. Para reprimi-los, não vacilei no exercício da severidade. Procedi corretamente, mas um centurião me advertiu que os sediciosos (ávidos por vingar a crucificação de um deles) tramavam minha morte. Fugi do acampamento, com os poucos soldados que me eram fiéis. No deserto, perdi-os entre os redemoinhos de areia e a vasta noite. Uma flecha cretense me lacerou. Por vários dias, errei sem encontrar água, ou por um só enorme dia multiplicado pelo sol, pela sede e pelo temor da sede. Deixei o caminho ao arbítrio de meu cavalo. Na aurora, a distância encrespou-se de pirâmides e de torres. Insuportavelmente, sonhei com um exíguo e nítido labirinto: no centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus olhos o viam, mas tão intrincadas e confusas eram as curvas que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.
II
Ao desenredar-me por fim desse pesadelo, vi-me atirado
e manietado a um oblongo nicho de pedra, não maior que uma sepultura comum,
superficialmente escavado no áspero
declive de uma montanha. Os lados eram úmidos, antes polidos pelo tempo que por labor. Senti no peito um doloroso latejo, senti que a sede me abrasava. Ergui-me e gritei debilmente. Ao pé da montanha, estendia-se sem rumor um arroio impuro, entorpecido por escombros e areia; na oposta margem, resplandecia (sob o último sol ou sob o primeiro) a evidente Cidade dos Imortais. Vi muros, arcos, frontispícios e foros: o alicerce era uma meseta de pedra. Uma centena de nichos irregulares, análogos ao meu, sulcavam a montanha e o vale. Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não falassem e que devorassem serpentes.
declive de uma montanha. Os lados eram úmidos, antes polidos pelo tempo que por labor. Senti no peito um doloroso latejo, senti que a sede me abrasava. Ergui-me e gritei debilmente. Ao pé da montanha, estendia-se sem rumor um arroio impuro, entorpecido por escombros e areia; na oposta margem, resplandecia (sob o último sol ou sob o primeiro) a evidente Cidade dos Imortais. Vi muros, arcos, frontispícios e foros: o alicerce era uma meseta de pedra. Uma centena de nichos irregulares, análogos ao meu, sulcavam a montanha e o vale. Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não falassem e que devorassem serpentes.
A urgência da sede me fez temerário. Considerei que
estava a uns trinta pés da areia: de olhos fechados, com as mãos atadas às
costas, atirei-me montanha abaixo. Afundei o rosto ensangüentado na água
escura. Bebi como abeberam os animais. Antes de perder-me outra vez no sonho e
nos delírios, inexplicavelmente repeti algumas palavras gregas: “Os ricos
teucros de Zeléia que bebem a água negra do Esepo…”
Não sei quantos dias e noites rodopiaram sobre mim.
Dolorido, incapaz de recuperar o abrigo das cavernas, despido na ignorada
areia, deixei que a lua e o sol brincassem com meu aziago destino. Os
trogloditas, infantis na barbárie, não me ajudaram a sobreviver ou a morrer. Em
vão, roguei-lhes que me dessem a morte. Um dia, com o fio de um pedernal, parti
minhas ligaduras. Em outro, levantei-me e pude mendigar ou roubar – eu, Marco
Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma – minha primeira
detestada ração de carne de serpente.
A ânsia de ver os Imortais, de tocar a sobre-humana
Cidade, quase me impedia de dormir. Como se penetrassem em meu propósito, não
dormiam também os trogloditas: a princípio, inferi que me vigiavam; depois, que
se haviam contagiado por minha inquietude, como poderiam contagiar-se os cães.
Para afastar-me da bárbara aldeia, escolhi a mais pública das horas, o cair da
tarde, quando todos os homens emergem das gretas e dos poços e olham o poente,
sem vê-lo. Orei em voz alta, menos para suplicar o favor divino que para
intimidar a tribo com palavras articuladas. Atravessei o arroio que os bancos
de areia entorpecem e dirigi-me à Cidade. Confusamente, seguiram-me dois ou
três homens. Eram (como os demais dessa linhagem) de minguada estatura; não
inspiravam temor, mas repulsa. Tive de contornar algumas ribanceiras
irregulares que me pareceram pedreiras; ofuscado pela pedreiras; ofuscado pela
grandeza da Cidade, eu a supusera próxima. Por volta da meia-noite, pisei,
eriçada de formas idolátricas na areia amarela, a negra sombra de seus muros.
Deteve-me uma espécie de horror sagrado. Tão abominados pelo homem são a novidade
e o deserto que me alegrei que um dos trogloditas me tivesse acompanhado até o
fim. Fechei os olhos e aguardei (sem dormir) que rebrilhasse o dia.
Disse que a Cidade estava construída sobre uma
meseta de pedra. Essa meseta, comparável a um alcantilado, não era menos árdua
que os muros. Em vão esgotei meus passos; o negro embasamento não registrava a
menor irregularidade, os muros invariáveis não pareciam consentir uma única
porta. A força do dia fez com que me refugiasse numa caverna; no fundo havia um
poço, no poço uma escada que se abismava até a treva inferior. Desci; por um
caos de sórdidas galerias cheguei a uma vasta câmara circular, a muito custo
visível. Havia nove portas naquele porão; oito davam para um labirinto que
falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto)
dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total
de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram. O silêncio era
hostil e quase perfeito; outro rumor não havia nessas profundas redes de pedra
além de um vento subterrâneo, cuja causa não descobri; sem ruído, perdiam-se
entre as gretas fios de água enferrujada. Habituei-me com horror a esse
duvidoso mundo; considerei inacreditável que pudesse existir outra coisa além
de porões providos de nove portas e além de longos porões que se bifurcavam.
Ignoro o tempo que tive de caminhar sob a terra; sei que certa vez confundi, na
mesma nostalgia, a atroz aldeia dos bárbaros e minha cidade natal, entre as
videiras.
No fundo de um corredor, um não previsto muro me
barrou os passos, uma remota luz caiu sobre mim. Ergui os ofuscados olhos: no
vertiginoso, no mais alto, vi um círculo de céu tão azul que chegou a
parecer-me de púrpura. Alguns degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me
relaxava, mas subi, só me detendo às vezes para pesadamente soluçar de
felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e
abóbadas, confusas pompas do granito e do mármore. Foi-me assim concedido
ascender da cega região de negros labirintos entretecidos à resplandecente
Cidade.
Emergi numa espécie de pequena praça, ou melhor, de
pátio. Circundava-o um só edifício de forma irregular e altura variável; a esse
edifício heterogêneo pertenciam as diversas cúpulas e colunas. Mais que qualquer
outro traço desse monumento inacreditável, causou-me admiração o antiquíssimo
de sua construção. Senti que era anterior aos homens, anterior à terra. Essa
evidente antigüidade (embora, de algum modo, terrível para os olhos) pareceu-me
adequada ao trabalho de operários imortais. Cautelosamente a princípio, com
indiferença depois, com desespero por fim, errei por escadas e pavimentos do
inextricável palácio. (Depois averigüei que eram inconstantes a extensão e a
altura dos degraus, fato que me fez compreender a singular fadiga que me
infundiram.) “Este palácio é obra dos deuses”, pensei primeiramente. Explorei
os inabitados recintos e corrigi: “Os deuses que o edificaram morreram”. Notei
suas peculiaridades e disse: “Os deuses que o edificaram estavam loucos”. Disse
isso, bem sei, com incompreensível reprovação que era quase remorso, com mais
horror intelectual que medo sensível. A impressão de enorme antigüidade
juntaram-se outras: a do interminável, a do atroz, a do complexamente
insensato. Eu havia cruzado um labirinto, mas a nítida Cidade dos Imortais me
atemorizou e repugnou. Um labirinto é uma casa edificada para confundir os
homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim. No
palácio que imperfeitamente explorei, a arquitetura carecia de fim. Abundavam o
corredor sem saída, a alta janela inalcançável, a aparatosa porta que dava para
uma cela ou para um poço, as inacreditáveis escadas inversas, com os degraus e
a balaustrada para baixo. Outras, aderidas aereamente ao costado de um muro
monumental, morriam sem chegar a nenhuma parte, no fim de dois ou três giros,
na treva superior das cúpulas. Ignoro se todos os exemplos que enumerei são
literais; sei que durante muitos anos infestaram meus pesadelos; já não posso
saber se esse ou aquele traço é transcrição da realidade ou das formas que
desatinaram minhas noites. “Esta Cidade”, pensei, “é tão horrível que sua mera
existência e perduração, embora no centro de um deserto secreto, contamina o
passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar,
ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz”. Não quero descrevê-la; um caos
de palavras heterogêneas, um corpo de tigre ou de touro, em que pululassem
monstruosamente, conjugados e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem
(talvez) ser imagens aproximadas.
Não recordo as etapas de meu regresso, entre os
poeirentos e úmidos hipogeus. Sei apenas que não me abandonava o temor de que,
ao sair do último labirinto, me rodeasse outra vez a nefanda Cidade dos Imortais.
Nada mais posso lembrar. Esse esquecimento, agora insuperável, foi talvez
voluntário; talvez as circunstâncias de minha evasão tenham sido tão ingratas
que, em algum dia não menos esquecido também, jurei esquecê-las.
III
Os que tiverem lido com atenção o relato de meus
trabalhos lembrarão que um homem da tribo me seguiu, como um cão poderia
seguir-me, até a sombra irregular dos muros. Quando saí do último porão,
encontrei-o na boca da caverna. Estava atirado na areia, onde desenhava
grosseiramente e apagava uma fileira de sinais que eram como as letras dos
sonhos, que se está a ponto de entender e logo se juntam. A princípio, pensei
que se tratava de alguma escrita bárbara; depois vi que é absurdo imaginar que
homens que não chegaram à palavra cheguem à escrita. Além disso, nenhuma das
formas era igual a outra, o que excluía ou afastava a possibilidade de serem
simbólicas. O homem as traçava, olhava para elas e as corrigia. Subitamente,
como se esse jogo o enfastiasse, apagou-as com a palma e o antebraço. Olhou-me,
não pareceu reconhecer-me. Entretanto, tão grande era o alívio que me inundava
(ou tão grande e medrosa minha solidão) que me pus a pensar que esse rudimentar
troglodita, que me olhava do chão da caverna, estivera me esperando. O sol
escaldava a planície; quando empreendemos o regresso à aldeia, sob as primeiras
estrelas, a areia era ardente sob os pés. O troglodita me precedeu; essa noite
concebi o propósito de ensiná-lo a reconhecer, e talvez a repetir, algumas
palavras. O cachorro e o cavalo (refleti) são capazes do primeiro; muitas aves,
como o rouxinol dos Césares, do último. Por muito grosseiro que fosse o
entendimento de um homem, sempre seria superior ao de irracionais.
A humildade e a miséria do troglodita trouxeram-me
à memória a imagem de Argos, o velho cão moribundo da Odisséia, e assim lhe pus
o nome de Argos e tentei ensiná-lo. Fracassei e tornei a fracassar. Os
arbítrios, o rigor e a obstinação foram de todo inúteis. Imóvel, com os olhos
inertes, não parecia perceber os sons que eu procurava inculcar-lhe. A alguns
passos de mim, era como se estivesse muito longe. Deitado na areia, como uma
pequena e arruinada esfinge de lava, deixava que sobre si girassem os céus,
desde o crepúsculo do dia até o da noite. Julguei impossível que não se apercebesse
de meu propósito. Lembrei-me de que se diz entre os etíopes que os macacos
deliberadamente não falam para que não os obriguem a trabalhar e atribuí a
suspicácia ou a temor o silêncio de Argos. Dessa fantasia passei a outras ainda
mais extravagantes. Pensei que Argos e eu participávamos de universos
diferentes; pensei que nossas percepções eram iguais, mas que Argos as
combinava de outra maneira e construía com elas outros objetos; pensei que
talvez não houvesse objetos para ele, mas um vertiginoso e contínuo jogo de
impressões brevíssimas. Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a
possibilidade de uma linguagem que ignorasse os substantivos, uma linguagem de
verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos. Assim foram morrendo os dias e
com os dias os anos, mas algo parecido com a felicidade ocorreu uma manhã.
Choveu, com lentidão poderosa.
As noites do deserto podem ser frias, mas aquela
tinha sido um fogo. Sonhei que um rio da Tessália (a cujas águas eu restituíra
um peixe de ouro) vinha resgatar-me; sobre a vermelha areia e a negra pedra eu
o ouvia aproximar-se; o frescor do ar e o rumor atarefado da chuva me
despertaram. Corri para recebê-la, despido. Declinava a noite; sob as nuvens amarelas,
a tribo, não menos feliz que eu, oferecia-se aos vívidos aguaceiros numa
espécie de êxtase. Pareciam coribantes possuídos pela divindade. Argos, olhos
postos na abóbada celeste, gemia; torrentes rolavam-lhe pelo rosto, não só de
água, mas (soube-o depois) de lágrimas. Argos, gritei, Argos.
Então, com mansa admiração, como se descobrisse uma
coisa perdida e esquecida há muito tempo, Argos balbuciou estas palavras:
“Argos, cão de Ulisses”. E depois, também sem olhar-me: “Este cão atirado no
esterco”.
Facilmente aceitamos a realidade, talvez por
intuirmos que nada é real. Perguntei-lhe o que sabia da Odisséia. A prática do
grego lhe era penosa; tive de repetir a pergunta.
“Muito pouco”, disse. “Menos que o rapsodo mais
pobre. Já terão passado mil e cem anos desde que a inventei.”
IV
Tudo me foi dilucidado naquele dia. Os trogloditas
eram os Imortais; o riacho de águas arenosas, o Rio que o cavaleiro procurava.
Quanto à cidade cujo renome se havia espalhado até o Ganges, nove séculos fazia
que os Imortais a haviam assolado. Com as relíquias de sua ruína ergueram, no
mesmo lugar, a desatinada cidade que eu percorri: espécie de paródia ou reverso
e também templo dos deuses irracionais que manejam o mundo e dos quais nada
sabemos, salvo que não se parecem com o homem. Aquela fundação foi o último
símbolo a que condescenderam os Imortais; marca uma etapa em que, julgando vã
qualquer obra, determinaram viver no pensamento, na pura especulação. Erigiram
a obra, esqueceram-na e foram morar nas covas. Absortos, quase não percebiam o
mundo físico.
Homero narrou essas coisas como quem fala com uma
criança. Também me falou de sua velhice e da derradeira viagem que empreendeu,
movido, como Ulisses, pelo propósito de chegar aos homens que não conhecem o
mar, nem comem carne temperada com sal, nem suspeitam o que seja um remo. Viveu
um século na Cidade dos Imortais. Quando a derrubaram, aconselhou a fundação da
outra. Isto não nos deve surpreender; diz-se que, depois de cantar a guerra de
Ílion, cantou a guerra das rãs e dos ratos. Foi como um deus que criara o
cosmos e em seguida o caos.
Ser imortal é insignificante; com exceção do homem,
todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o
incompreensível é saber-se imortal. Tenho notado que, apesar das religiões,
essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a
imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século prova que só
crêem nele, já que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou
a castigá-lo. Mais razoável me parece a roda de certas religiões do Industão;
nessa roda, que não tem princípio nem fim, cada vida é efeito da anterior e
gera a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto… Doutrinada num exercício de
séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e
quase do desdém. Sabia que em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as
coisas. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda
bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro.
Assim como nos jogos de azar, os números pares e os números ímpares tendem ao
equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o talento e a estupidez, e
talvez o rústico poema de Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto
das Éclogas ou por uma sentença de Heráclito. O pensamento mais fugaz obedece a
um desenho invisível e pode coroar, ou inaugurar, uma forma secreta. Sei dos
que praticavam o mal para que nos séculos futuros resultasse o bem, ou tivesse
resultado nos já pretéritos… Encarados assim, todos os nossos atos são justos,
mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero
compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e
mudanças, o impossível seria não compor, sequer uma vez, a Odisséia. Ninguém é
alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus,
sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira
de dizer que não sou.
O conceito do mundo como sistema de precisas compensações
influiu enormemente nos Imortais. Em primeiro lugar, tornou-os invulneráveis à
piedade. Mencionei as antigas pedreiras que sulcavam os campos da outra margem;
um homem despenhou-se na mais funda; não podia lastimar-se nem morrer, mas a
sede o abrasava; antes que lhe atirassem uma corda, passaram setenta anos.
Tampouco interessava o próprio destino. O corpo era um submisso animal
doméstico e bastava-lhe, cada mês, a esmola de umas horas de sono, de um pouco
de água e de restos de carne. Que ninguém nos queira rebaixar a ascetas. Não há
prazer mais complexo que o pensamento e a ele nos entregávamos. Às vezes, um
estímulo extraordinário nos restituía ao mundo físico. Por exemplo, naquela
manhã, o velho prazer elementar da chuva. Esses lapsos eram raríssimos; todos
os Imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que jamais vi de
pé: um pássaro se aninhava em seu peito.
Entre os corolários da doutrina de que não existe
coisa que não esteja compensada por outra, há um de muito pouca importância
teórica, mas que nos induziu, em fins ou em princípios do século X, a
dispersar-nos pela face da terra. Cabe nestas palavras: “Existe um rio cujas
águas dão a imortalidade; em alguma região haverá outro rio cujas águas a
apaguem”. O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorra o
mundo acabará, algum dia, tendo bebido de todos. Propusemo-nos descobrir esse
rio.
A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos
os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam
pode ser o último; não há rosto que não esteja por dissolver-se como o rosto de
um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do inditoso.
Entre os Imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros
que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de
outros que no futuro o repetirão até a vertigem. Não há coisa que não esteja
como que perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez,
nada é preciosamente precário. O elegíaco, o grave, o cerimonioso não vigoram
para os Imortais. Homero e eu nos separamos nas portas de Tânger; creio que não
nos dissemos adeus.
V
Percorri novos reinos, novos impérios. No outono de
1O66, militei na ponte de Stamford, já não lembro se nas fileiras de Harold,
que não tardou em encontrar seu destino, ou se nas daquele infausto Harald
Hardrada, que conquistou seis pés de terra inglesa, ou um pouco mais. No sétimo
século da Hégira, no arrabalde de Bulaq, transcrevi com pausada caligrafia, em
um idioma que esqueci, em um alfabeto que ignoro, as sete viagens de Simbad e a
história da Cidade de Bronze. Num pátio do cárcere de Samarcanda joguei
muitíssimo o xadrez. Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia. Em
1638, estive em Kolozsvar e depois em Leipzig. Em Aberdeen, em 1714, assinei os
seis volumes da Ilíada de Pope; sei que os freqüentei com deleite. Por volta de
1729, discuti a origem desse poema com um professor de retórica, chamado,
creio, Giambattista; suas razões me pareceram irrefutáveis. No dia 4 de outubro
de 1921, o Patna, que me conduzia a Bombaim, teve que fundear em um porto da
costa eritréia.1 Desci; lembrei-me de outras manhãs muito antigas, também
diante do mar Vermelho, quando era tribuno de Roma e a febre e a magia e a inação
consumiam os soldados. Nos arredores, vi um caudal de água clara; provei-a,
levado pelo costume. Ao subir à margem, uma árvore espinhosa me lacerou o dorso
da mão. A inusitada dor me pareceu muito viva. Incrédulo, silencioso e feliz,
contemplei a preciosa formação de uma lenta gota de sangue. De novo sou mortal,
repeti a mim mesmo, de novo me pareço com todos os homens. Nessa noite, dormi
até o amanhecer.
…Revisei estas páginas, passado um ano. Parece-me
que elas se ajustam à verdade, mas nos primeiros capítulos, e ainda em certos
parágrafos dos outros, creio perceber algo falso. Isso é efeito, talvez, do
abuso de traços circunstanciais, procedimento que aprendi com os poetas e que
tudo contamina de falsidade, já que esses traços podem ser freqüentes nos
fatos, mas não na memória deles… Creio, contudo, ter descoberto uma razão mais
íntima. Vou escrevê-la; não importa que me julguem fantástico.
A história que narrei parece irreal porque nela se
mesclam os sucessos de dois homens diferentes. No primeiro capítulo, o
cavaleiro quer saber o nome do rio que banha as muralhas de Tebas; Flamínio
Rufo, que antes dera à cidade o epíteto de Hekatómpylos, diz que o rio é o
Egito; nenhuma dessas locuções é adequada a ele, mas a Homero, que faz menção
expressa, na Ilíada, a Tebas Hekatómpylos, e na Odisséia, pela boca de Proteu e
de Ulisses, diz invariavelmente Egito por Nilo. No capítulo segundo, o romano,
ao beber a água imortal, pronuncia algumas palavras em grego; essas palavras
são homéricas e podem ser encontradas no fim do famoso catálogo das naves.
Depois, no vertiginoso palácio, fala de “reprovação que era quase remorso”;
essas palavras correspondem a Homero, que havia projetado esse horror. Tais
anomalias me inquietaram; outras, de ordem estética, permitiram-me descobrir a
verdade. O último capítulo as inclui; aí está escrito que militei na ponte de
Stamford, que transcrevi, em Bulaq, as viagens de Simbad,
o Marinheiro, e que assinei, em Aberdeen, a Ilíada inglesa de Pope. Lê-se, inter alia: “Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia”. Nenhum desses testemunhos é falso; significativo é o fato de havê-los destacado. O primeiro de todos parece convir a um homem de guerra, mas logo se percebe que o narrador não repara no bélico e sim no destino dos homens. Os que seguem são mais curiosos. Uma obscura razão elementar me obrigou a registrá-los; fiz isso porque sabia que eram patéticos. Não o são, ditos pelo romano Flamínio Rufo. São, ditos por Homero; é estranho que este copie, no século XIII, as aventuras de Simbad, de outro Ulisses, e descubra, muitos séculos depois, em um reino boreal e em um idioma bárbaro, as formas de sua Ilíada. Quanto à frase que reúne o nome de Bikanir, vê-se que foi construída por um homem de letras, desejoso (como o autor do catálogo das naves) de mostrar vocábulos esplêndidos.2
o Marinheiro, e que assinei, em Aberdeen, a Ilíada inglesa de Pope. Lê-se, inter alia: “Em Bikanir, professei a astrologia, e também na Boêmia”. Nenhum desses testemunhos é falso; significativo é o fato de havê-los destacado. O primeiro de todos parece convir a um homem de guerra, mas logo se percebe que o narrador não repara no bélico e sim no destino dos homens. Os que seguem são mais curiosos. Uma obscura razão elementar me obrigou a registrá-los; fiz isso porque sabia que eram patéticos. Não o são, ditos pelo romano Flamínio Rufo. São, ditos por Homero; é estranho que este copie, no século XIII, as aventuras de Simbad, de outro Ulisses, e descubra, muitos séculos depois, em um reino boreal e em um idioma bárbaro, as formas de sua Ilíada. Quanto à frase que reúne o nome de Bikanir, vê-se que foi construída por um homem de letras, desejoso (como o autor do catálogo das naves) de mostrar vocábulos esplêndidos.2
Quando se aproxima o fim, já não restam imagens da
lembrança; só restam palavras. Não é estranho que o tempo tenha confundido as
que alguma vez me representaram com as que foram símbolos do destino de quem me
acompanhou, por tantos séculos. Eu fui Homero; em breve, serei Ninguém, como
Ulisses; em breve, serei todos: estarei morto.
Pós-escrito de 195O. Entre os comentários que a
publicação anterior despertou, o mais curioso, já que não o mais urbano,
biblicamente se intitula A Coat of Many Colours (Manchester,1948 ) e é obra da
pena tenacíssima do doutor Nahum Cordovero. Compreende umas cem páginas. Fala
dos centões gregos, dos centões da baixa latinidade, de Ben Jonson, que definiu
seus contemporâneos com trechos de Sêneca, do Virgilius Evangelizans de
Alexander Ross, dos artifícios de George Moore e de Eliot e, finalmente, da
“narração atribuída ao antiquário Joseph Cartaphilus”. Denuncia, no primeiro
capítulo, breves interpolações de Plínio (Historia Naturalis, V, 8); no
segundo, de Thomas de Quincey (Writings,111, 439); no terceiro, de uma epístola
de Descartes ao embaixador Pierre Chanut; no quarto, de Bernard Shaw (Back to
Methuselah, V). Infere dessas intrusões, ou furtos, que todo o documento é
apócrifo.
No meu entender, a conclusão é inadmissível.
“Quando se aproxima o fim”, escreveu Cartaphilus, “já não restam imagens da
lembrança; só restam palavras”. Palavras, palavras deslocadas e mutiladas,
palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos.
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1 Há uma rasura no manuscrito; talvez o nome do
porto tenha sido apagado.
2 Ernesto Sábato sugere que o “Giambattista” que discutiu a formação da Ilíada com o antiquário Cartaphilus seja Giambattista Vico; esse italiano sustentava que Homero é um personagem simbólico, à maneira de Plutão ou de Aquiles.
2 Ernesto Sábato sugere que o “Giambattista” que discutiu a formação da Ilíada com o antiquário Cartaphilus seja Giambattista Vico; esse italiano sustentava que Homero é um personagem simbólico, à maneira de Plutão ou de Aquiles.
Jorge Luis Borges
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