Morreu
trasanteontem, às 7 da tarde, de uma congestão, o meu particular amigo, o
mendigo Justino Antônio.
Era um
homem considerável, sutil e sórdido, com uma rija organização cerebral que se estabelecia
neste princípio perfeito: a sociedade tem de dar-me tudo quanto goza, sem
abundância mais também sem o meu trabalho - princípio que não era socialista
mas era cumprido à risca pela prática rigorosa.
A
primeira vez que vi Justino Antônio num alfarrabista da rua São José foi em dia
de sábado. Tinha um fraque verde, as botas rotas, o cabelo empastado e uma
barba de profeta, suja e cheia de lêndeas. Entrou, estendeu a mão ao
alfarrabista.
— Hoje,
não tem.
— Devo
notar que há já dois sábados nada me dás.
— Não
seja importuno. Já disse.
— Bem,
não te zangues. Notei apenas porque a recusa não foi para sempre. Este cidadão,
entretanto, vai ceder-me quinhentos réis.
— Eu!
— Está
claro. Fica com esta despesinha a mais: quinhentos réis aos sábados. É melhor
dar a um pobre do que tomar um chope. Peço, porém, para notares que não sou um
mordedor, sou mendig0, esmolo, esmolo há vinte anos. Tens diante de ti um
mendigo autêntico.
— E
por que não trabalha?
— Porque
é inútil.
Dei
sorrindo a cédula. Justino não agradeceu, e quando o vimos pelas costas, o
alfarrabista indignado prorrompeu contra o malandrim que com tamanho descaro
arrancava os níqueis à algibeira alheia. Achei original Justino. Como mendigo
era uma curiosa figura perdida em plena cidade, capaz de permitir um pouco de
fantasia filosófica em torno de sua diogênica dignidade. Mas o mendigo
desapareceu, e só um mês depois, ao sair de casa, encontrei-o à porta.
— Deves-me
dois mil-réis de quatro sábados, e venho ver se me arranjas umas horas usadas.
Estas estão em petição de miséria.
Fi-lo
entrar, esperar à porta da saleta, forneci-lhe botas e dinheiro.
— E
se me desses o almoço?
Mandei
arranjar um prato farto, e com a gula de descrevê-lo, fui generoso.
— Vem
para a mesa.
— A mesa
e o talher são inutilidades. Não peço senão o que necessito no momento. Pode-se
comer perfeitamente sem mesa e sem talher.
Sentou-se
num degrau da escada e comeu gravemente o pratarraz. Depois pediu água, limpou
as mãos nas calças e desceu.
— Espera
aí, homem. Que diabo! Nem dizes obrigado.
— É
inútil dizer obrigado. Só deste o que falta não te faria. E deste por vontade.
Talvez fosse até por interesse. Deste-me as botas velhas como quem compra um
livro novo. Conheço-te.
— Conheces-me?
— Não
te enchas, vaidoso. Eu conheço toda a gente. Até para o mês.
— Queres
um copo de vinho?
— Não.
Costumo embriagar-me às quintas; hoje é segunda.
Confesso
que o mendigo não me deixou uma impressão agradável. Mas era quanto possível
novo, inédito, com a sua grosseria e as suas atitudes de Sócrates de
ensinamentos. E diariamente lembrava a sua figura, a sua barba cheia de
lêndeas... Uma vez vi-o na galeria da Câmara, na primeira fila, assistindo aos
debates, e na mesma noite, entrando num teatro do Rocio, o empresário desolado
disse-me:
— Ah!
não imaginas a vazante! É tal que mandei entrar o Justino.
— Que
Justino?
— Não
conheces? Um mendigo, um tipo muito interessante, que gosta de teatro. Chega à
bilheteira e diz: “Hoje não arranjei dinheiro. Posso entrar?” A
primeira vez que me vieram contar a pilhéria achei tanta graça que consenti.
Agora, quando arranja dez tostões compra a senha sem dizer palavra e entra.
Quando não arranja repete a frase e entra. Um que mal faz?
Fui ver o
curioso homem. Estava em pé em geral, prestando uma sinistra atenção às
facécias de certo cômico.
— Justino,
por que não te sentas?
— É
inútil. Vejo bem de pé.
— Mas
o empresário...
— Contento-me
com a generosidade do empresário.
— Mas
na Câmara estava sentado.
— Lá
é a comunhão que paga.
Insisti
no interrogatório, a falar da peça, dos atores, dos prazeres, da vida, do
socialismo, de uma porção de coisas fúteis, a ver se o mendigo falava.
Justino
conservou-se mudo. No intervalo convidei-o a tomar uma soda, por não ser
quinta-feira.
— Soda é inútil. Estás a aborrecer-me. Vai embora.
Outra
qualquer pessoa ficaria indignadíssima. Eu curvei resignadamente a cabeça e
acabei vexado.
A voz
daquele homem, branca, fria, igual, no mesmo tom, era inexorável.
— É
um tipo o teu espectador - disse ao empresário.
— Ah!...
ninguém lhe arranca palavra. Sabes que nunca me disse obrigado?
Eu andava
precisamente neste tempo a interrogar mendigos para um inquérito à vida da miséria
urbana e alguns dos artigos já haviam aparecido. Dias depois, estando a comprar
charutos, entra pela tabacaria adentro o homem estranho.
— Queres
um charuto?
— Inútil.
Só fumo às terças e aos domingos. Os charuteiros fornecem-me. Entrei para receber
os meus dois mil-réis atrasados e para dizer que não te metas a escrever a meu
respeito.
— Por
quê?
— Porque
abomino a minha pessoa em letra de forma, apesar de nunca a ter visto assim. Se
fizeres a feia ação, sou forçado a brigar contigo, sempre que te encontrar.
A
perspectiva de rolar na via pública com um mendigo não me sorria. Justino faria
tudo quanto dissera. Depois era um fenômeno de hipnose. Estava inteiramente
dominado, escravizado àquela figura esfingética da lama urbana, não tinha
forças para resistir à sua calma e fria vontade. Oh! ouvir esse homem!
Saber-lhe a vida!
Como
certa vez entretanto, à 1 hora da manhã, atravessasse o equívoco e silencioso
jardim do Rocio, vi uma altercação num banco. Era o tempo em que a polícia
resolvera não deixar os vagabundos dormirem nos bancos. Na noite de luar, dois
guardas civis batiam-se contra um vulto esquálido de grandes barbas.
Acerquei-me. Era ele.
— Vamos,
seu vagabundo.
— É
inútil. Não vou.
— Vai
à força!
— É
inútil. Sabem o que é este banco para mim? A minha cama de verão há doze anos!
De uma hora em diante, por direito de hábito, respeitam-na todos. Tenho visto
passar muito guarda, muito suplente, muito delegado. Eles vão-se, eu fico. Nem
tu, nem o suplente, nem o comissário, nem o delegado, nem o chefe serão capazes
de me tirar esse direito. Moro neste banco há uma dúzia de anos. Boa-noite.
Os civis
iam fazer uma violência. Tive de intervir, convencê-los, mostrar autoridade,
enquanto Justino, recostado e impassível, dizia:
— Deixa.
Eles levam-me, eu volto.
Afinal os
guardas acederam, e Justino deitou-se completamente.
— Foi
inútil. Não precisava. Mas eu sou teu amigo?
— Meu
amigo?
— Certo.
Nunca te pedi nada que te pudesse fazer falta e nunca te menti. Fica certo. Sou
o teu melhor amigo, sou o melhor amigo de toda a gente.
— E
não gostas de ninguém.
— Não
é preciso gostar para ser amigo. Amigo é o que não sacrifica.
E desde
então comecei a sacrificar-me voluntariamente por ele, a correr à polícia
quando o sabia preso, a procurá-lo quando o não via e desesperado porque não
aceitava mais de dois mil-réis da minha bolsa, e dizia, inexorável, a cada
prova da minha simpatia:
— É
inútil, inteiramente inútil!
Durante
três anos dei-me com ele sem saber quantos anos tinha ou onde nascera. Nem
isso. Apenas ao cabo de seis meses consegui saber que fumava aos domingos e às
terças, embebedava-se às quintas, ia ao teatro às sextas e às segundas, e todo
dia à Câmara. Nas noites de chuva dormia no chão! Numa hospedaria; em noites secas
no seu banco. Nunca tomava banho, pedia pouco, e ao menor alarde de
generosidade, limitava o alarde com o seu desolador: é inútil. Teria tido vida
melhor? Fora rico, sábio? Amara? Odiara? Sofrera? Ninguém sabia! Um dia
disse-lhe:
— A
tua vida é exemplar. És o Buda contemporâneo da Avenida.
Ele
respondeu:
— É
um erro servir de exemplo. Vivo assim porque entendo viver assim. Condensei
apenas os baixos instintos da cobiça, exploração, depravação, egoísmo em que se
debatem os homens se na consciência de uma vontade que se restringe e por isso
é forte. Numa sociedade em que os parasitas tripudiam - é inútil trabalhar. O
trabalho é de resto inútil. Resolvi conduzir-me sem idéias, sem interesse, no
meio do desencadear de interesses confessados e inconfessáveis. Sou uma espécie
de imposto mínimo, e por isso nem sou malandro, nem mendigo, nem um homem como
qualquer - porque não quero mais do que isso.
— E
não amas?
— Nem
a mim mesmo porque é inútil. Desses interesses encadeados resolvi, em lugar de
explorar a caridade ou outro gênero de comércio, tirar a percentagem mínima, e
daí o ter vivido sem esforço com todos os prazeres da sociedade, sem invejas e
sem excessos, despercebido como o invisível. Que fazes tu? Escreves? Tempo
perdido com pretensões a tempo ganho. Que gozas tu? Teatros, jantares, festas
em excesso nos melhores lugares. Eu gozo também quando tenho vontade, no dia de
porcentagem no lugar que quero - o menor, o insignificante - os teatros e tudo
quanto a cidade pode dar de interessante aos olhos. Apenas sem ser apontado e
sem ter ódios.
— Que inteligência a tua!
— A
verdadeira inteligência é a que se limita para evitar dissabores. Tu podes ter
contrariedades. Eu nunca as tive. Nem as terei. Com o meu sistema, dispenso-me de
sentir e de fingir, não preciso de ti nem de ninguém, retirando dos defeitos e
das organizações más dos homens o subsídio da minha calma vida.
— É
prodigioso.
— É
um sistema, que serias incapaz de praticar, porque tu és como todos os outros,
ambicioso e sensual.
Quando
soube da sua morte corri ao necrotério a fazer-lhe o enterro. Não era possível.
Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala
comum “a entrada geral do espetáculo dos vermes”.
Saí
desolado porque essa criatura fora a única que não me dera nem me tirara, e não
chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo
o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós como nós livres dele, a
dez mil léguas de nós, posto que ao nosso lado.
E também com certa raiva - por que não dizê-lo? — porque o meu interesse fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse.
Enfim
morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém falou da sua morte. Um bem? Um mal?
Nem uma nem outra coisa, porque, afinal, na vida tudo é inteiramente inútil...
João do Rio
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