O Brasil jovem
está “curtindo” o vestibular. Páginas inteiras dos jornais acompanham a
operação nacional. Onde houver um garotão ou um “brotinho” debruçado sobre a
folha de papel, aí estará o fotógrafo para registrar a cena. E a cena é esta: o
garotão tirou os sapatos para descontrair-se até o dedão, e está mais deitado
do que sentado; assim as ideias lhe chegam melhor. O “brotinho” se enroscou
todo, no auge da concentração, e emerge do microinvólucro estampado, como um
antúrio pensante. Quem se lembraria de fotografar esses dois no ato de fazer
prova, se estivéssemos no Brasil de 1940? Hoje, vestibular é notícia, e a imagem dos jovens tem uma importância
jornalística antes concedida a imperadores em tempo de guerra. O particular
tornou-se geral. Conseguir vaga em escola de nível superior ficou sendo briga
de foice, acompanhada, golpe a golpe, pela multidão de pais. E pelos diretores
de cursinhos, aliás cursões a julgar pelo espaço com que se promovem nos
jornais.
Todo mundo de
olho no vestibular, pelo Brasil afora. Uma vaga para 30 candidatos, ou uma coisa
assim. Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos. Ah, por que não
funcionam articulados o serviço de encomendas de filhos e o serviço de
construção de escolas? Não há jeito de os dois se
entenderem. Aquele está sempre ganhando distância. Por mais que o segundo se
esforce em criar, equipar, botar em funcionamento novos cursos, o primeiro se
ri dele, fornecendo a cada ano ninhadas cada vez mais numerosas, carentes de
instrução e formação profissional candidatos a futuros empregos...
O vestibular foi
preparado o ano inteiro como se fosse um fim em si mesmo. Em torno dele,
criou-se uma literatura de testes, malícias intelectuais e táticas, que permita
ao jovem abrigar-se de toda espécie de surpresa. Mas a surpresa é infalível. No
vestibular de Ciências Econômicas, Ciências Contábeis e Administração, ele é
convidado a “traduzir” para o português de lei a expressão “corta essa”.
Imagino a exclamação indignada:
- “Sem essa!”
Pois, afinal,
como “cortar” “corta essa”, tão incisiva, tão plena de sentido, reduzindo-a aos
antigos padrões normais da língua? Nós não estamos alargando a diferenciação entre o português de Portugal e
o português do Brasil. Estamos é diversificando o português do Brasil em uma
terceira língua urbana, de vocabulário flutuante, renovado a cada estação, de
tal modo que, de uma estação para outra , as palavras trocam de semântica, e
quem não for esperto fica sem recursos verbais para se fazer entender e para
entender o próximo: não “corta” mesmo “bulhufas”. De resto, devo confessar que
o exemplo não vale, pois “bulhufas” (ou “bulufas”), toda a “patota” sabe, “já
era”.
Outra maldade,
está no vestibular do Instituto Tecnológico de Aeronáutica, foi mandar redigir
carta que, entre outras pedras-no-caminho, incluísse o pronome “lhe”. Esse pronome
foi nacionalizado no Brasil como herdeiro dos direitos e obrigações do pronome
“o”. Onde se deve empregar “o”, brasileiro de classe média emprega sempre,
dulçurosamente, “lhe”: muito prazer em lhe conhecer, eu vim lhe visitar. Dessas
coisas que tornam infeliz por uma semana o ouvido do meu querido Abgar Renault.
A moçada queixa-se de certos vocábulos que estão
“perseguindo” no vestibular deste ano, como “fortuito” e “lenitivo”. Claro que
não ouviram pronunciar nenhum deles, e estranharam suas fisionomias
desconhecidas. Não é de admirar. O vocabulário médio não vai além de 50
palavras, no diálogo atual; algumas, até são meias palavras, como “está”,
facilitado em “tá”. Que será “fortuito”? Forte e gratuito? Também
lembra furto. “Lenitivo” soa melhor, “leni” é suave pomada se espalhando na
pele, mas a sugestão não traz lenitivo algum ao candidato, se ele ignora que
bicho é, realmente, lenitivo.
Do fundo bem fundo de questões como esta vem o
apelo: Leia um pouco, rapaz. Abra de vez em quando um livro de contos do velho
Machado, garota. Não “dá pé”? A praia
não deixa? E você
cochila na primeira página? Tente
outra vez. Insista. Se por acaso sua “cuca” estiver “fundindo”, se você estiver
na “fossa”, devido a um “grilo” fortuito, acabará encontrando lenitivo ao
descobrir, nos escritos do velho, a magia de certas palavras exprimindo coisas
sutis, inclusive a razão de seu “grilo”.
Carlos Drummond de Andrade
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