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Mostrando postagens de 2014

Crônica da crônica

Sou uma crônica. Desde que alguém me inventou – e isso já tem um tempinho – andei por um monte de lugares menos nobres que esse post. Nasci num caderno de anotações. Não, não era um moleskine com capa de couro e procedência garantida por certificado. Era um bloquinho tosco e ensebado. O meu Autor era um pouco mais jovem e, cá entre nós, meio cabeça de vento. Apesar de não ser dos mais envernizados eruditamente falando, achava-se o Rubem Braga da Zona Oeste. Toda vez que vinha até as páginas do bloco escrevia trechos de mim, mas acabava não me concluindo. Foram meses e meses assim. E eu não sabia o que era pior: quando ele chegava do nada, escolhia uma folha a esmo e tentava desenvolver alguma ideia nela ou quando ia embora e me largava semanas dentro da sua mochila úmida e escura. Não preciso dizer que a presença ou a ausência dele me provocavam igualmente uma gastura tremenda. Houve instantes em que me desesperei e lancei aos céus uma lamentação chorosa: po...

O caso do acaso

foi numa curva feita às pressas foi ali, que me vi em teus olhos refletida  entretons castanhos, soube-me perdida e pecar em ti foi um ato quase inocente quando errar parece ser simplesmente o mais certo e salivei, ainda desconhecendo teu o gosto e antecipei no pensamento milhares de versos rascunhos secretos dos meus desejos latentes a espera que a gaveta certa fosse fatalmente aberta e foi... Eliane Barreto

O fazedor de amanhecer

Sou leso em tratagens com máquina. Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis. Em toda a minha vida só engenhei 3 máquinas Como sejam: Uma pequena manivela para pegar no sono. Um fazedor de amanhecer para usamentos de poetas E um platinado de mandioca para o fordeco de meu irmão. Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias automobilísticas pelo Platinado de Mandioca. Fui aclamado de idiota pela maioria das autoridades na entrega do prêmio. Pelo que fiquei um tanto soberbo. E a glória entronizou-se para sempre em minha existência. Manoel de Barros

Gramática

Há dias em que sou ponto, querendo encerrar coisas. Em outros, vejo-me vírgula, que a tudo tenta separar. Tenho também meus   momentos de dois pontos,   ao tentar enumerar   aquilo que me incomoda. E quando sou travessão, é para tirar os nós da garganta, berrar, se for preciso. A verdade é que em mim cabem todas as pontuações. Afinal, sou um texto diferente a cada dia. Um dizer que nunca se acaba. Emille Kisar

A luta e a lição

Um brasileiro de 38 anos, Vítor Negrete, morreu no Tibete após escalar pela segunda vez o ponto culminante do planeta, o monte Everest. Da primeira, usou o reforço de um cilindro de oxigênio para suportar a altura. Na segunda (e última), dispensou o cilindro, devido ao seu estado geral, que era considerado ótimo.  As façanhas dele me emocionaram, a bem sucedida e a malograda. Aqui do meu canto, temendo e tremendo toda a vez que viajo no bondinho do Pão de Açúcar, fico meditando sobre os motivos que levam alguns heróis a se superarem. Vitor já havia vencido o cume mais alto do mundo. Quis provar mais, fazendo a escalada sem a ajuda do oxigênio suplementar. O que leva um ser humano bem sucedido a vencer desafios assim?  Ora, dirão os entendidos, é assim que caminha a humanidade. Se cada um repetisse meu exemplo, ficando solidamente instalado no chão, sem tentar a aventura, ainda estaríamos nas cavernas, lascando o fogo com pedras, comendo animais crus e puxando nossas m...

O cego e o escritor

Havia um cego que pedia esmola numa esquina da cidade. Todos os dias, um escritor passava por ele, sempre de manhã e à noite. Em todas as ocasiões, deixava alguns trocados no chapéu. O cego segurava um cartaz com a seguinte frase: “Cego de nascimento. Uma esmola, por favor.” Um dia, o escritor teve uma ideia: virou o cartaz do cego ao contrário e escreveu outra frase.  À noite, perguntou ao cego como tinha sido o seu dia.  O cego, muito contente, respondeu:  - Até parece mentira, mas hoje foi extraordinário! Todos que passavam por mim, deixavam alguma coisa. Afinal, o que é que você escreveu no letreiro?  O escritor tinha escrito uma frase breve, mas que mexia com todos os que passavam. A frase era: “Em breve chegará a primavera e eu não poderei vê-la.” A maioria das vezes não importa o que você diz, mas como você diz. Por isso, tome cuidado ao falar com as pessoas. Fale com o coração. Toque a alma e a sensibilidade das pessoas com suas palavr...

Acordar, viver

Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror? O sono transportou-me àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão. Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa, suportar a semelhança das coisas ásperas de amanhã com as coisas ásperas de hoje? Como proteger-me das feridas que rasga em mim o acontecimento, qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente? E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora, algoz do inocente que não sou? Ninguém responde, a vida é pétrea. Carlos Drummond de Andrade 

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro são indiferentes. Não me reveles teus sentimentos, que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto. Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te abo...

Ah! Os relógios

Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidas em seus fúteis problemas tão perdidas que até parecem mais uns necrológios... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira. Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida: não cabe, a cada qual, uma porção. E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém - ao voltar a si da vida - acaso lhes indaga que horas são... Mário Quintana

Por que as pessoas sofrem?

     — Vó, por que as pessoas sofrem?      — Como é, minha neta?      — Por que as pessoas grandes vivem bravas, irritadas, sempre preocupadas com alguma coisa?      — Bem, minha filha, muitas vezes porque elas foram ensinadas a viver assim.      —Vó...      —Oi...      — Como é que as pessoas podem ser ensinadas a viver mal? Não consigo entender. Na minha escola a professora só me ensina coisas boas.      — É que elas não percebem que foram convencidas a ser infelizes, e não conseguem mudar o que as torna assim. Você não está entendendo, não é, meu amor?      —Não, Vovó.      — Você lembra da estorinha do Patinho Feio?      — Lembro.      — Então... o Patinho se considerava feio porque era diferente. Isso o deixava muito infeliz...

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza do homem é sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas. Manoel de Barros

Autobiografia

Os dias escrevem minhas peripécias enquanto Abraço todos os personagens do livro das escolhas. Leio a vida nas páginas da bibliografia dos minutos E enfrento meus antagonistas com sabres ou flores Meu pseudônimo é uma frase: Minha história está escrita no coração De quem eu conquistei. Protagonista – sou pó e letras. Anakin Ribeiro

A vida segundo Charlie Brown

Provérbio brasileiro

Casinha branca

Eu tenho andado tão sozinho ultimamente Que não vejo em minha frente Nada que me dê prazer Sinto cada vez mais longe a felicidade Vendo em minha mocidade Tanto sonho a perecer. Eu queria ter na vida simplesmente Um lugar de mato verde Pra plantar e pra colher Ter uma casinha branca de varanda Um quintal e uma janela Para ver o sol nascer. Às vezes saio a caminhar pela cidade À procura de amizades Vou seguindo a multidão Mas eu me retraio olhando em cada rosto Cada um tem seu mistério Seu sofrer, sua ilusão. Eu queria ter na vida simplesmente Um lugar de mato verde Pra plantar e pra colher Ter uma casinha branca de varanda Um quintal e uma janela Para ver o sol nascer. Gilson

Pai, veja as nuvens correndo

Um jovem de 24 anos, olhando pela janela de um trem, gritou: “Pai, olhe as árvores andando para trás!” O pai sorriu e um casal que estava sentado próximo a eles olhou para o comportamento infantil do rapaz de 24 anos, com piedade. De repente, o rapaz novamente exclamou: “Pai, veja as nuvens correndo com a gente!” O casal não resistiu. Eles pensaram que o rapaz era mentalmente deficiente e disseram para o velho: “Por que você não o leva a um bom médico?” O velho sorriu e disse: “Eu fiz isto e acabamos de sair do hospital. Meu filho era cego de nascença e acabou de ganhar estes olhos hoje…”

Milagres

Ora, quem acha que um milagre é alguma coisa de especial? Por mim, de nada sei que não sejam milagres: ou ande eu pelas ruas de Manhattan, ou erga a vista sobre os telhados na direção do céu, ou pise com os pés descalços bem na franja das águas pela praia, ou fale durante o dia com uma pessoa a quem amo, ou vá de noite para a cama com uma pessoa a quem amo, ou à mesa tome assento para jantar com os outros, ou olhe os desconhecidos na carruagem de frente para mim, ou siga as abelhas atarefadas junto à colmeia antes do meio-dia de verão ou animais pastando na campina ou passarinhos ou a maravilha dos insetos no ar, ou a maravilha de um pôr-de-sol ou das estrelas cintilando tão quietas e brilhantes, ou o estranho contorno delicado e leve da lua nova na primavera, essas e outras coisas, uma e todas — para mim são milagres, umas ligadas às outras ainda que cada uma bem distinta e no seu próprio lugar. Cada momento de luz ou de treva é para mim um milagre,...

A hora

A porta do tempo é opaca Mas menino a viu entreaberta. Foi espiar. “- Mãe, cada minuto é feito de sessenta borboletas coloridas Que voam depressa pra todo lugar.” A mãe sorriu. “- E qual a estrutura da hora, filho?” “- A hora, mãe, é quando a matemática das borboletas se junta E elas seguram as asas umas das outras Como se fosse a humanidade inteira... “ A humanidade inteira, Essa é a hora. Nara Rubia Ribeiro

A ratoeira

Preocupadíssimo, o rato viu que o dono da fazenda havia comprado uma ratoeira: estava decidido a matá-lo! Começou a alertar todos os outros animais: - Cuidado com a ratoeira! Cuidado com a ratoeira! A galinha, ouvindo os gritos, pediu que ficasse calado: - Meu caro rato, sei que isso é um problema para você, mas não me afetará de maneira nenhuma – portanto não faça tanto escândalo! O rato foi conversar com o porco, que sentiu-se incomodado por ter seu sono interrompido. - Há uma ratoeira na casa! - Entendo sua preocupação, e estou solidário com você – respondeu o porco. – Portanto, garanto que você estará presente nas minhas preces esta noite; não posso fazer nada, além disso. Mais solitário que nunca, o rato foi pedir ajuda à vaca. - Meu caro rato, e o que eu tenho a ver com isso? Você já viu alguma vez uma vaca ser morta por uma ratoeira? Vendo que não conseguia a solidariedade de ninguém, o rato voltou até a casa da fazenda, escondeu-se no seu buraco, e passou a noite...