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Mostrando postagens de 2013

Sementeira

O poeta faz agricultura às avessas: numa única semente planta a terra inteira. Com lâmina de enxada a palavra fere o tempo: decepa o cordão umbilical do que pode ser um chão nascente. No final da lavoura o poeta não tem conta para fechar: ele só possui o que não se pode colher. Afinal, não era a palavra que lhe faltava. Era a vida que ele, nele, desconhecia. Mia Couto

O advogado

O advogado foi receber o salário e notou que vinha 500 reais a mais, pegou o dinheiro e foi embora. No outro mês quando foi receber o salário, viu que faltava 500 reais. Assim que viu, foi direto reclamar com o chefe: — Está faltando 500 reais no meu salário. — Que engraçado. No mês passado você recebeu 500 reais a mais e não reclamou. — Eu sei. Um erro eu aceito, mas dois é inadmissível.

Cavador do Infinito

Com a lâmpada do Sonho desce aflito E sobe aos mundos mais imponderáveis, Vai abafando as queixas implacáveis, Da alma o profundo e soluçado grito. Ânsias, Desejos, tudo a fogo, escrito Sente, em redor, nos astros inefáveis. Cava nas fundas eras insondáveis O cavador do trágico Infinito. E quanto mais pelo Infinito cava mais o Infinito se transforma em lava E o cavador se perde nas distâncias... Alto levanta a lâmpada do Sonho. E como seu vulto pálido e tristonho Cava os abismos das eternas ânsias! Cruz e Sousa

Panapaná

As borboletas sustentam o céu. Tentar alcançá-las é difícil porque elas dançam E embelezam o triunfo da brevidade sobre o eco vaidoso da eternidade. Trovão e relâmpago não afugentam borboletas. Há quem assegure que o alimento delas é apenas o jejum dos espantalhos Ou a violência que foi convidada a entrar no campo de lírios. Ora, os lírios farão dormir quem entrar nele. A felicidade é uma borboleta. Buscai a vossa borboleta, se não sereis néscios. Meu estigma foi feito por um louco que esmagou minha borboleta. Anakin Ribeiro

Do jardim em Copacabana

Outro dia contei aqui a história de uma rua triste em Liverpool, onde alguém colocou um vaso de flores na janela. Em um ano, todos tinham suas casas pintadas e floridas, porque resolveram seguir um bom exemplo. Agora, a versão brasileira: um amigo meu, músico famoso, comprou um apartamento térreo em Copacabana. Transformou o terraço – na parte de trás do apartamento – num jardim. As árvores cresceram, as trepadeiras se espalharam. O condomínio do prédio se reuniu, dizendo que as raízes podiam afetar a estrutura da construção, as trepadeiras iam enferrujar a grade divisora. Depois de dois anos de luta inútil, meu amigo foi obrigado a destruir seu jardim, e cimentar o terraço. O síndico comentou: “na verdade, o problema não eram as raízes, a trepadeira, ou as plantas. Os outros moradores sentiam-se frustrados porque você tinha um jardim, e eles não. Preferem ver uma paisagem cinza da janela, do que um jardim que não é delas.”. E o terraço tornou a ficar cinzento e...

Do treinamento

Os guerreiros ninjas vão para o campo; o milho acabou de ser plantado. Obedecendo ao comando do treinador, pulam por cima dos locais onde as sementes foram colocadas. Todos os dias os guerreiros ninjas voltam para o campo. A semente se transforma em broto, e eles saltam por cima. O broto se transforma em uma pequena planta, e eles saltam por cima. Não se aborrecem. Não acham que é perda de tempo. O milho cresce, e os saltos se tornam cada vez mais altos. Assim – quando a planta está madura – os guerreiros ninjas ainda conseguem saltar sobre ela.   Por quê? Porque conhecem bem seu obstáculo. Mas existe gente que não age assim: quando o problema é pequeno, não dão importância; e quando o problema cresce, sentem-se incapazes de superá-lo. Paulo Coelho

Milionário ou faxineiro da Microsoft?

Um homem que estava desempregado entra num concurso para ser faxineiro da Microsoft. O gerente de recursos humanos o entrevista, faz um teste (pede para ele varrer o chão) e lhe diz: “o serviço é seu. Me dê o seu e-mail para que eu envie a ficha de inscrição, a data e a hora em que você deverá se apresentar para o serviço”. O homem, desesperado, responde que não tem computador, muito menos e-mail. O gerente de RH disse então que lamentava o ocorrido, mas que a ausência de e-mail significava que virtualmente o homem não existia, e que, como não existia, não poderia trabalhar. O homem saiu desesperado, sem saber o que fazer e com somente 10 dólares no bolso. Decidiu então ir ao supermercado e comprar uma caixa com 10 quilos de tomates. Indo de porta em porta, resolveu vender os tomates a quilo e, em menos de duas horas, já tinha conseguido duplicar seu capital. Depois de repetir a operação mais três vezes, voltou para casa com 60 dólares. E assim o tempo passa. O homem verif...

Soneto do corifeu

São demais os perigos desta vida Para quem tem paixão, principalmente Quando uma lua surge de repente E se deixa no céu, como esquecida. E se ao luar que atua desvairado Vem se unir uma música qualquer Aí então é preciso ter cuidado Porque deve andar perto uma mulher. Deve andar perto uma mulher que é feita De música, luar e sentimento E que a vida não quer, de tão perfeita. Uma mulher que é como a própria Lua: Tão linda que só espalha sofrimento Tão cheia de pudor que vive nua. Vinícius de Moraes

Filotecnia

Ofereço flores para o impossível. Convido a perfeição a ser testemunha da eternidade. A imagem do sublime está nua E sua nudez embriaga os desavisados. O raio da manhã é o meu sabre contra o iminente. A inocência nunca falha Em firmar castelos no ar. Meu amor às tintas do milagre está guardado No coração de um jade caído num abismo sem-fim. Eis o sentido da vida se derreter em poesia. Anakin Ribeiro

Os filhos do lixo

Há quem diga que dou esperança; há quem proteste que sou pessimista. Eu digo que os maiores otimistas são aqueles que, apesar do que vivem ou observam, continuam apostando na vida, trabalhando, cultivando afetos e tendo projetos. Às vezes, porém, escrevo com dor. Como hoje. Acabo de assistir a uma reportagem sobre crianças do Brasil que vivem do lixo. Digamos que são o lixo deste país, e nós permitimos ou criamos isso. Eu mesma já vi com estes olhos gente morando junto de lixões, e crianças disputando com urubus pedaços de comida estragada para matar a fome. A reportagem era uma história de terror – mas verdadeira, nossa, deste país. Uma jovem de menos de 20 anos trazia numa carretinha feita de madeiras velhas seus três filhos, de 4, 2 e 1 ano. Chegavam ao lixão, e a maiorzinha, já treinada, saía a catar coisas úteis, sobretudo comida. Logo estavam os três comendo, e a mãe, indagada, explicou com simplicidade: "A gente tem de sobreviver, né?". O relato dessa qu...

Vestibular

O Brasil jovem está “curtindo” o vestibular. Páginas inteiras dos jornais acompanham a operação nacional. Onde houver um garotão ou um “brotinho” debruçado sobre a folha de papel, aí estará o fotógrafo para registrar a cena. E a cena é esta: o garotão tirou os sapatos para descontrair-se até o dedão, e está mais deitado do que sentado; assim as ideias lhe chegam melhor. O “brotinho” se enroscou todo, no auge da concentração, e emerge do microinvólucro estampado, como um antúrio pensante. Quem se lembraria de fotografar esses dois no ato de fazer prova, se estivéssemos no Brasil de 1940 ? Hoje, vestibular é notícia, e a imagem dos jovens tem uma importância jornalística antes concedida a imperadores em tempo de guerra. O particular tornou-se geral. Conseguir vaga em escola de nível superior ficou sendo briga de foice, acompanhada, golpe a golpe, pela multidão de pais. E pelos diretores de cursinhos, aliás cursões a julgar pelo espaço com que se promovem nos jornais. Todo mundo ...

Epigrama nº 2

És precária e veloz, Felicidade. Custas a vir e, quando vens, não te demoras. Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo, e, para te medir, se inventaram as horas. Felicidade, és coisa estranha e dolorosa: Fizeste para sempre a vida ficar triste: Porque um dia se vê que as horas todas passam, e um tempo despovoado e profundo, persiste. Cecília Meireles

A rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A antirrosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada. Vinícius de Moraes

Persistência

O livre-arbítrio é um caleidoscópio. Escrevo meus planos no dorso do vento. Espalho borboletas ao redor do fracasso. Ofereço vaga-lumes para a solidão. Persistir é vestir-se do sempre. Felicidade e dor São dádivas do tempo. Minha coisa preferida é prosseguir. Anakin Ribeiro

Escola de escolhas

Aprende tu com tudo. Ama ou odeia. Sê breve ou eterno. Livre-arbítrio, destino e conhecimento. Mistura-os numa ampulheta. A areia que de lá escorre É o mesmo pó do qual Foste criado. A escolha é tudo. Todos temos labirinto. Anakin Ribeiro

Longe de todos os olhos

  O chefe Junaid tinha um discípulo preferido. Inconformados, os outros foram reclamar. “Vamos fazer uma prova. Quem vencer, será seu discípulo favorito”, disseram eles. O chefe concordou, e pediu que lhe trouxessem vinte pássaros. Deu um para cada discípulo e ordenou: “será considerado o melhor aquele que conseguir. Cada um deve matar o pássaro num lugar onde ninguém possa ver”. Cada discípulo procurou o lugar mais difícil possível. Todos cumpriram o pedido – exceto o favorito, que trouxe o pássaro vivo. “Por que descumpriste minha ordem ? ”, perguntou Junaid. “Porque o mestre disse que tinha que matar esta ave em um lugar onde ninguém pudesse ver”, respondeu o discípulo. “Em todas as partes onde fui, Deus estava me olhan do”. “Você foi o único a entender meu pedido”, disse Junaid. E os outros discípulos pediram desculpas por terem sido invejosos.    Paulo Coelho

Folha em branco

Certo dia eu estava aplicando uma prova e os alunos, em silêncio, tentavam responder às perguntas com uma certa ansiedade. Faltavam uns 15 minutos para o encerramento e um aluno levantou o braço, dirigiu-se a mim e disse: “Professor, pode me dar uma folha em branco?” Levei a folha até sua carteira e perguntei por que ele queria mais uma folha em branco. Ele respondeu:  “Eu tentei responder às questões, rabisquei tudo, fiz uma confusão danada e queria começar outra vez.” Apesar do pouco tempo que faltava, confiei no rapaz, dei-lhe a folha em branco e fiquei torcendo por ele. Aquela sua atitude causou-me simpatia. Hoje, lembrando aquele episódio simples, comecei a pensar quantas pessoas receberam uma folha em branco, que foi a vida que Deus lhe deu até agora, e só têm feito rabiscos, tentativas frustradas e uma confusão danada…  Acho que agora seria bom momento para se repensar a própria vida, pedir uma nova folha em branco, uma nova oportunidade para ser feliz....

Barcos de papel

Quando a chuva cessava e um vento fino franzia a tarde tímida e lavada,   eu saía a brincar, pela calçada,   nos meus tempos felizes de menino.   Fazia, de papel, toda uma armada;   e, estendendo meu braço pequenino,   eu soltava os barquinhos, sem destino,   ao longo das sarjetas, na enxurrada...   Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,   que não são barcos de ouro os meus ideais:   são feitos de papel, são como aqueles,   perfeitamente, exatamente iguais...   - Que os meus barquinhos, lá se foram eles! Foram-se embora e não voltaram mais!   Guilherme de Almeida

As máscaras

Cada ano põe no teu rosto uma nova máscara. Este alegre, aquele indiferente, o outro triste, o que há de vir, porventura gesticulante e ridícula. Cada ano põe no teu rosto uma nova máscara, e segue caminho... Mas o teu eu impassível, cuja fisionomia apenas os deuses conhecem, sabe que ele nem sorri, nem chora, nem gestícula. O teu eu ao ver-se ao espelho através das janelas cada vez menos luminosas dos teus olhos, diz para si mesmo: “Eis aqui a máscara nova que a vida me pôs na cara.” ... E pensa noutra coisa. Muitas das tuas máscaras ficaram durante muito tempo nas fotografias. Durarão mais do que merecem. Mas nenhuma foi em nenhum momento a expressão exata do teu eu. Isto te leve a procurar nos homens a fisionomia interior, a fisionomia escondida. E poderás dizer um dia: “esteve aqui um anjo e eu não sabia”. Amado Nervo

Sonho impossível

Sonhar Mais um sonho impossível Lutar Quando é fácil ceder Vencer O inimigo invencível Negar Quando a regra É vender Sofrer A tortura implacável Romper A incabível prisão Voar Num limite improvável Tocar O inacessível chão É minha lei, é minha questão Virar esse mundo Cravar esse chão Não me importa saber Se é terrível demais Quantas guerras terei que vencer Por um pouco de paz E amanhã se esse chão que eu beijei For meu leito e perdão Vou saber que valeu delirar E morrer de paixão E assim, seja lá como for Vai ter fim a infinita aflição E o mundo vai ver uma flor Brotar do impossível chão. Chico Buarque de Holanda

Leitura do mundo

                                                 “Tudo fala a seu próprio modo.”                                                          James Joyce. Ulisses Eu leio as rosas e as borboletas. Leio o ódio. O silêncio. Leio o amor. E o desprezo dos homens. O mundo fala. O tempo fala. Eu entendo. Tudo é leitura. Anakin Ribeiro

Errare humanum est

Durante toda a vida foi mau. Aliás, quase toda. Próximo do fim arrependeu-se. A luz é guerreiro invencível. Mas as pessoas continuaram a odiá-lo. Mas ele morreu sem odiá-los. No seu epitáfio, os seus entes queridos (quem conheciam a falha dos que o odiavam) colocaram em latim: “Errar é humano.” Anakin Ribeiro

Faça a diferença

Era uma vez um escritor, que morava numa praia tranqüila, junto a uma colônia de pescadores. Todas as manhãs ele passeava à beira-mar para se inspirar e, à tarde, colocava-se a escrever. Um dia, enquanto caminhava pela praia, viu a silhueta de alguém que parecia dançar. Quando chegou mais perto, observou um jovem pegando as estrelas-do-mar da areia, uma a uma, jogando-as de volta ao oceano. - Por quê você está fazendo isto? -, perguntou-lhe o escritor. - Você não vê? -, respondeu o jovem. – A maré está baixa e o sol está brilhando. Elas vão secar ao sol e morrer se ficarem aqui na praia. - Mas meu jovem, existem milhares de quilômetros de praias por este mundo afora e centenas de milhares de estrelas-do-mar espalhadas pelas suas areias. Você joga umas poucas de volta ao mar. Que diferença faz? A maioria vai perecer de qualquer maneira… O jovem pegou mais uma estrela na areia, atirando-a de volta ao mar. Depois olhou para o escritor e lhe disse: - Para essa, eu fiz a...