Nosso filho Gabriel,
de catorze anos, era gago. Eu e minha mulher Celina já o havíamos levado a
vários especialistas, mas a gagueira dele continuava.
Gabriel era estudioso
e passava de ano em todas as matérias, menos em português, em que sempre ficava
de recuperação. Conseguíamos um professor para lhe dar aulas particulares e
assim mesmo ele passava com dificuldade.
Nas ocasiões em que o
professor mudava, o que podia ocorrer quando Gabriel passava de ano, eu e
Celina procurávamos o novo professor para falar das dificuldades do nosso
filho. Nesse ano, quando marcamos a entrevista, verificamos que quem ia ensinar
português ao Gabriel era uma professora, de nome Alice, que fora transferida de
outra escola, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, separada do marido,
sem filhos.
A professora
perguntou se Gabriel gostava de ler e minha mulher respondeu que ele detestava
e se irritava quando o professor mandava ler um livro da bibliografia. A
professora Alice disse que isso era comum, os jovens, com algumas exceções, não
gostavam de ler.
Uns meses depois a
professora Alice nos telefonou pedindo que fôssemos à escola. Ela nos recebeu gentilmente
e disse que haviam sido realizadas as primeiras provas e que Gabriel tivera um
desempenho abaixo de sofrível. Acrescentou que ele precisaria de aulas
particulares. Minha mulher deu um suspiro, era ela quem tomava conta das
finanças da família e conhecia melhor do que eu a nossa situação econômica. Eu
sempre achei que Gabriel deveria estudar numa escola pública, mas Celina queria
que ele frequentasse o melhor colégio, cuja mensalidade era uma fortuna.
A professora Alice
era uma mulher inteligente e devia ter percebido o nosso embaraço. Ou talvez
não tivesse tido a sensibilidade de ler o nosso semblante, apenas notara pelas
nossas roupas que nós não pertencíamos ao mesmo nível econômico e social dos
outros pais que tinham filhos naquele colégio. Houve um instante em que percebi
que a professora Alice olhara os sapatos de Celina, e as mulheres entendem de
sapatos, e são capazes de descobrir, pelo sapato de uma mulher, o nível
econômico-social a que ela pertence.
Depois de consultar
uma agenda, a professora Alice disse que poderia dar as aulas particulares ao
Gabriel sem cobrar por isso.
Eu e Celina alegamos,
sem muita convicção, que não queríamos dar esse trabalho a ela, mas a
professora Alice foi categórica e marcou para todas as terças e quintas-feiras
à noite aulas particulares em sua casa.
Aquilo nos deixou
aliviados, não apenas deixaríamos de pagar pelas aulas como elas não seriam
realizadas em nosso pequeno e desconfortável apartamento.
Um mês mais tarde
notei que Gabriel estava deitado no quarto lendo. Perguntei que livro era
aquele e ele respondeu que lhe fora emprestado pela professora Alice. Ela é boa
professora?, perguntei, e ele respondeu que ela era legal.
Contei para Celina o
que acontecera. Ela não acreditou que Gabriel estivesse lendo um livro, disse
que ele odiava livros. Acrescentei que era um livro do Machado de Assis e ela
fez uma careta dizendo que quando mandavam ela ler Machado de Assis no colégio
ela não conseguia e pedia a uma amiga para lhe dizer qual era a trama do livro,
e acrescentou que Machado de Assis era um chato insuportável.
Mais tarde, quando
estávamos na cama, ela disse, essa professora Alice é uma feiticeira.
Feiticeira do bem,
acrescentou depois de uma pausa.
Mas a professora
Alice era muito mais feiticeira do que supúnhamos. Além de ter tido uma boa
nota na segunda prova e de ficar lendo diariamente, até mesmo deixando de ver o
jogo de futebol na televisão, Gabriel parou de gaguejar.
Celina lembrou-se do
médico que dissera que para curar a gagueira de Gabriel precisaria usar um tal
de método holístico. Ele explicou o que era, escreveu num papel, que eu
guardei. A gagueira, conforme escreveu o médico, só poderia ser curada através
do holismo, que busca a integração dos aspectos físicos, emocionais, mentais do
ser humano. Segundo o médico, nós não éramos apenas matéria física, nem somente
consciência, nem unicamente emoções, éramos uma totalidade que precisa ser
analisada em sua inteireza. O tratamento holístico custaria uma fortuna. Creio
que ele não olhou os sapatos de Celina.
O certo é que Gabriel
não gaguejava mais e ao comentar o assunto no escritório um colega me disse que
isso era muito comum, um menino ou menina gaguejava até uma certa idade e de
repente parava de gaguejar.
Gabriel não apenas
falava com desembaraço, também deixara de ter o aspecto sorumbático de antes.Ter
se curado da gagueira lhe fizera um grande bem. E também a Celina, que
sentiu-se perdoada. Nós tivemos o Gabriel quando ela tinha dezesseis anos de
idade e eu, dezoito, ainda solteiros. E ela, que era muito católica, eu diria
mesmo uma carola, acreditava que a deficiência de Gabriel tinha sido uma
espécie de punição divina e sentia-se culpada.
Convidamos a
professora Alice para jantar em nossa casa. Era uma pessoa agradável,
inteligente e muito falante. Quem ficou muito calado durante o jantar foi o Gabriel,
certamente com medo de gaguejar na frente da professora. Eu o provoquei várias
vezes, mas ele respondia monossilabicamente.
Celina perguntou à
professora se Gabriel ainda precisava daquelas aulas extras, explicou que não queríamos
abusar da sua generosidade. Alice respondeu que ele estava indo muito bem, principalmente
na parte de redação, pois passara a ler bastante, mas na gramática ainda havia algumas
insuficiências.
Um dia recebi um
telefonema de um comissário de menores chamado Lacerda, que disse que queria ter
uma conversa reservada comigo. Pedi uma licença no escritório e marquei uma
hora à tarde em que Celina estaria trabalhando.
Lacerda ao chegar se
identificou. Em seguida perguntou se eu conhecia a professora Alice Peçanha. Respondi
que sim. Lacerda disse que fora ao colégio e tivera conhecimento de que o meu
filho de catorze anos, Gabriel, estava tendo aulas particulares com ela, em sua
casa, durante a noite. Respondi que sim. Ele então me disse que a professora
Alice Peçanha fora obrigada a abandonar a escola onde ensinava anteriormente,
em outra cidade, porque fora acusada de abusar sexualmente de um aluno de treze
anos, a quem também dava aulas particulares, mas a acusação não fora devidamente
comprovada.
Mulheres pedófilas, disse
Lacerda, são raras, essa atração sexual de um adulto por crianças ocorre mais
com homens. Então, com uma voz grave, disse que gostaria de falar com o meu
filho, para preparar as informações que seriam enviadas ao juizado.
Assim que ele acabou de
falar eu perguntei se uma mulher ter relações com um menino de catorze anos
faria mal a ele. O comissário respondeu que o Estatuto da Criança e do
Adolescente dizia que era crime submeter um adolescente, não importava o sexo,
à exploração sexual. Meninos e meninas eram tratados igualmente perante a lei,
se não se aceitava que um homem adulto tivesse relações sexuais com uma menina,
o que chegava a ser considerado estupro presumido, também não se podia aceitar
que uma mulher adulta tivesse relações sexuais com um menino. Disse que era
dever deles, comissários, conforme a lei, garantir a inviolabilidade da
integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, dos dois
sexos. Lamentava muito, mas precisava ter uma conversa com o meu filho. Se
confirmasse que a professora Alice abusava dele, ela seria processada de acordo
com a lei.
Concordei com ele,
pedi para me esperar que eu daria um pulo no colégio, que era próximo, e traria
o meu filho para conversar com ele.
Quando o meu filho
chegou o comissário disse que queria falar com ele sem a minha presença. Saí da
sala e deixei os dois a sós.
O comissário Lacerda
devia ser um homem meticuloso, pois ficou conversando com o meu filho quase
duas horas. Depois abriu a porta da sala e me chamou. Disse que o meu filho lhe
dissera que a professora Alice jamais tocara nele. E que, conforme a sua
experiência em interrogar menores, ele não tinha dúvidas de que o meu filho
dizia a verdade.
Antes de se despedir,
lamentou o tempo que perdia fazendo investigações baseadas em informações falsas.
Ficamos calados na
sala, eu e o meu filho, um sem olhar para o outro. Gabriel, depois de algum tempo,
disse que seguira as minhas instruções, fizera exatamente o que eu mandara,
tanto que o comissário acreditara nele. Respondi que ele agira bem. Gabriel disse
que gostava da professora, que ela curara a sua gagueira, fizera ele gostar de
ler, e que o que eles faziam na cama não era nenhum pecado. Respondi que o
assunto estava encerrado, que a mãe dele não precisava saber de nada e que eu
não queria saber de mais nada.
Gabriel disse que
naquela noite tinha aula com a professora Alice, perguntou se devia ir. Eu
respondi que sim, ele devia ir a todas as aulas na casa da professora Alice.
Gabriel me deu um abraço. E
não falamos mais no assunto.
Rubem
Fonseca
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