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Internet


 

“Querida Arroba Misteriosa. Sim, aceito casar com você. Será que o nosso será o primeiro casamento a nascer neste chat site? Pode dar matéria em revista.

 

Engraçado como são as coisas. Meus bisavós namoraram por correspondência. Foi um casamento arranjado pela família, a parte que emigrou e a parte que ficou na Europa. Só se conheceram quando ela chegou no Brasil, de navio, e ele estava no cais, abanando as cartas dela em papel azul. Cheguei a ler uma destas cartas. Eram compridas, formais, o equivalente literário de um vestido abotoado até o pescoço. Um casto vestido azul. Não sei como eram as cartas do meu avô mas tenho certeza que ele tentou desabotoar, metaforicamente, alguns dos botões e até introduzir uma sugestão, um símile, uma alusão que fosse sob o vestido da bisa, sem sucesso. Corresponderam-se durante dois anos sem que aparecesse, nas cartas dela, uma nesga de carne, uma pista de que ela nem sequer soubesse o que era sexo, quanto mais fazê-lo.

 

Já os meus avós se conheceram numa quermesse de igreja. Se mandavam recados pelo alto-falante da quermesse. `Alô garota do vestido grená, seu admirador de boina azul lhe dedica a música...' Sabe? Durante quatro, cinco anos eles só se falaram na quermesse anual da igreja, e sempre pelo alto-falante.

Quando finalmente se aproximaram, foram mais dois anos de namoro e um de noivado e só na noite de núpcias, imagino, ficaram íntimos, e mesmo assim acho que o vovô disse `Com licença' antes de crã.

 

Meu pai pediu minha mãe em namoro, depois pediu em noivado, depois pediu em casamento, quando finalmente pode comê-la foi como chegar no guichê certo depois de preencher todas as formalidades, reconhecer todas as firmas e esperar que chamassem a sua senha. Entende? Durante o namoro ele lhe mandava poemas. Minha mãe sempre dizia que os poemas é que a tinham conquistado, e que se fosse ser justa deveria ter casado com o Vinícius de Morais. E você lembra qual foi a primeira coisa que você me disse quando nos conhecemos neste site? `Eu não faço sexo no primeiro encontro, mas quem está contando?' Só muito depois perguntou meu nome verdadeiro ― meu nickname era `Brazilian Stallion', lembra? ― e deu outros detalhes da sua personalidade.

 

As pessoas dizem que houve uma revolução sexual. O que houve foi o fechamento de um ciclo, uma involução. No tempo das cavernas o macho abordava a fêmea, grunhia alguma coisa e a levava para a cama, ou para o mato. Com o tempo desenvolveu-se a corte, a etiqueta da conquista, todo o ritual de

aproximação que chegou a exageros de regras e restrições e depois foi se abreviando aos poucos até voltarmos, hoje, ao grunhido básico, só que eletrônico. Fechou-se o ciclo.

 

A corte, claro, tinha sua justificativa. Dava à mulher a oportunidade de cumprir seu papel na evolução, selecionando para procriação aqueles machos que, durante a aproximação, mostravam ter aptidões que favoreceriam a espécie, como potência física ou econômica ou até um gosto por Vinícius de Morais. Isto quando podiam selecionar e a escolha não era feita por elas, pelos pais ou por casamenteiros. No futuro, quando todo namoro for pela Internet, todo sexo for virtual e as mulheres ― ou os homens, nunca se sabe ― só derem à luz a bytes, o único critério para seleção será ter um computador com modem e um bom provedor de linha.

 

Quem ou o que será que nos juntou neste site, Arrobinha? Terá sido apenas o acaso, ou nossas almas já se buscavam no ciberespaço mesmo antes da Internet? Não interessa. O que interessa é que vamos nos casar e ser felizes. Por sinal, você ainda não me disse o seu nome.

 

No futuro muitos casamentos começarão assim como o nosso, num chat sit da Internet. Não sei o que será da espécie. Tenho uma visão do futuro em que viveremos todos no ciberespaço, volatizados. Só nossos corpos ficarão na terra porque alguém tem que manejar o teclado e o mouse e pagar a conta da luz.

 

Na nossa primeira conversa na Internet você pediu as especificações do meu aparelho e eu não sabia se você estava falando do meu computador ou do meu pênis. Mandei detalhes dos dois. Comecei na Internet procurando sexo, como todo mundo. Encontrei com facilidade. Só o que você precisa ter, além do software adequado, é curiosidade, tempo, paciência e um cartão de crédito internacional válido. Entrei em alguns sites incríveis. Eu pensei que conhecesse todas as variedades de sexo possíveis. Não conhecia nem a metade. De sexo com frutas e plantas eu já sabia. Uma vez conheci um sujeito que chegou a pensar em casar com uma bananeira, só para ter algum tipo de posse legal e evitar que outros a possuíssem. Era uma bananeira sedutora à beça. Ele acabou derrubando a bananeira, enlouquecido pelo ciúmes. Ela morreu e secou na sua cama, mas pelo menos era só dele. Sexo com animais, quem não sabe que existe? Eu nunca experimentei, só sei que há. Mas você sabia que existe sexo com móveis e utensílios domésticos? Descobri um site só para praticantes do sexo com estofados e artigos para casa e cozinha. Não aderi, mas passei a olhar os móveis da minha casa com outros olhos, pensando em como seria ter sexo com eles.

Principalmente uma poltrona jeitozinha, com umas perninhas bem torneadas, que, mesmo sem saber bem por que, eu namorava desde garoto. No site havia instruções até para sexo com aspirador de pó. Dizem que é inigualável, apesar de perigoso. Mas não entrei nessa não. Meu negócio era gente. Meu negócio, vamos ser bem claros, era a minha solidão. Decidi criar coragem e entrar nesta sala de bate-papo da Internet para me comunicar com outros como eu. E com mulheres. Sou um cara tímido, meus contatos pessoais com mulheres sempre foram


difíceis. A verdade é que minha vida sexual se resumia em chamadas para sex- fones em lugares que eu nunca identifiquei. Todas as mulheres tinham sotaque português e quando eu perguntava onde elas estavam respondiam `na cama, pois', ou `na banheira, ora' e nunca diziam o país. Uma me perguntava uma coisa que parecia `estereto?' Eu não entendia. Ela `estereto?' e eu `o que'? E ela `estereto, pois não?' e eu `o que'? Até que ela perdeu a paciência e gritou o nome da peça! Pensei que estivesse me xingando, só depois me dei conta que estava perguntando se ele estava ereto. Não era uma vida sexual satisfatória. Até que entrei na Internet e você apareceu, Arrobinha. Foi como se eu fosse um peixe, um peixe pequeno me debatendo na rede, pedindo para ser notado e ao mesmo tempo com medo de ser pescado, e você tivesse metido sua longa mão branca na água e me pegado. Pelo menos imagino que sua mão seja longa e branca. A primeira coisa que você me disse foi `Eu não faço sexo no primeiro encontro, mas quem está contando?' Eu disse que o meu nome verdadeiro não era `Brazilian Stallion' e dei o meu verdadeiro nome ― falso, claro ― e só naquele nosso primeiro papo ficamos mais de uma hora, lembra? Durante a qual você me disse que tinha uma coleção de ursos de pelúcia que dormiam com você e era loira e alta e me apaixonei. Me apaixonei por palavras na tela de um computador. Amor ao primeiro chat.

 

Naquela noite, tenho que confessar, eu tive um pensamento terrível. E se fosse tudo mentira? Se você não fosse o que dizia ser, nem loira, nem alta, nem louca para me conhecer e, meu Deus, nem mulher? Agora eu sei que você é sincera e você sabe o meu nome de verdade. Vamos nos casar. Mas antes, precisamos nos conhecer. Já fizemos amor virtual, agora precisamos ter o supremo contato sexual, a união extrema, a coisa mais íntima que dois seres podem fazer, que é nos olhar nos olhos. Enquanto não nos encontrarmos, Arrobinha, tudo permanecerá uma mentira em potencial. A começar pelos nossos orgasmos simultâneos. Diga a verdade. Você estava fingindo, não estava?”

 

Luis Fernando Veríssimo

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