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Mostrando postagens de 2016

O vagabundo de Lisboa

Subindo aqui a avenida que dá para os fundos de minha casa, cumprimentando os passantes, parando para ver os meninos jogando bola no parque e assobiando uma musiquinha cujo nome não sei mas que, nesta manhã, não me sai da cabeça, detenho-me na Pastelaria Brasil-América, para comprar uma caixa de fósforos. Não sou muito chegado a essa pastelaria — cuja única qualidade (e, assim mesmo, questionável) é ser perto aqui de casa — porque as iscas que nela servem são de baixa qualidade e há um irmãozinho lusitano que nela trabalha que gosta de me gozar. Mas esqueci o isqueiro em casa, tenho de comprar fósforos. Encontro o mesmo irmãozinho, ele me diz o preço, eu me confundo todo com as moedas, ele me goza outra vez. “Um dia eu ainda lhe pego”, penso eu, fingindo que não ligo, mas muito mal-intencionado intimamente. E prossigo avenida Estados Unidos acima, para pegar o metrô, que aqui se chama metro. O dia não está nem quente nem frio, há um belo sol, as sacadas dos apartamentos estão to...

O velho e a flor

Por céus e mares eu andei Vi um poeta e vi um rei Na esperança de saber o que é o amor. Ninguém sabia me dizer E eu já queria até morrer Quando um velhinho com uma flor assim falou: O amor é o carinho É o espinho que não se vê em cada flor É a vida quando Chega sangrando Aberta em pétalas de amor. Vinícius de Moraes

Tornado

Seria deveras difícil desculpar a própria alma quando ela busca saciar o que ela deseja, se não é só o corpo que tem desejos. Quem já não foi arrastado pela fúria de um tornado? Como ficou teu sonho depois que o lançaste ao interior de um tornado? Eu saí, transformado, do olho do meu furacão. Vagar num vórtice nos dilacera ou nos fortalece. Renunciar a uma paixão. Desistir de um amor. É sábio ou idiota abrir mão da melhor coisa do mundo? A alma nos convida a coragens vertiginosas: Saltar de montanhas apenas para aterrissar em jardins paradisíacos. Todos temos asas, se antes tivermos raízes. Não há nada mais triste do que matar um sonho. Não há nada mais extraordinário que existir. Anakin Ribeiro

Aula de poesia

O professor chegou com uma mala. O professor presenteou cada aluno com uma rosa. O professor abriu um livro e o livro era o infinito. A rosa espinhenta fazia cada mão sangrar.   Todos os alunos mergulharam no livro E nessa proeminente jornada Deslizaram por um arco-íris em preto e branco Ouviram músicas que ainda não foram criadas Viram monstros que só sabiam dizer “sim” Abraçaram desejos que se convertiam em beija-flores Até chegarem a uma porta: A porta da percepção.   Abriram-na e entraram. À frente, espelhos os aguardava. Todavia, antes de se aproximarem dos espelhos Uma pergunta lutava contra uma resposta E a mais forte vencia.   Quando chegaram diante dos espelhos Perceberam que o discurso era o ar Que todos respiravam   E as palavras, o vento.   Cada estudante tinha seu próprio espelho.   O diálogo com o espelho foi silencioso Breve e infinito Porque o próprio livro era o infinito. ...

O Sindicato dos Calígrafos

O Sindicato dos Calígrafos está em assembléia permanente. Esta decisão não foi tomada de chofre, e não é a resposta a uma situação aguda. Ao contrário, a medida se impôs em decorrência do agravamento das más condições de exercício da profissão, o que levou à convocação de sucessivas reuniões – primeiro mensais, depois semanais e, por fim, diárias -, até que os calígrafos associados (em número de trinta, atualmente) resolveram optar pela assembléia permanente como forma de mobilização constante. Mesmo porque não lhes resta outra alternativa. Permanecer em suas modestas casas de porta e janela, situadas em bairros distantes, pensando sobre a vida, ruminando mágoas e aguardando a morte? Nunca. Pelo menos na sede do sindicato – e até que o juiz julgue a ação de despejo contra eles movida – têm abrigo, a companhia uns dos outros (o que não é pouco para estes idosos, cujo círculo de relações se estreita cada vez mais), e a sensação de estarem lutando, unidos, por uma causa grandiosa. A pe...

Tomada a morte, sem exagero

Ela não pode fazer uma piada encontrar uma estrela, construir uma ponte. Ela nada sabe sobre tecelagem, mineração, agricultura, construir navios, ou assar bolos. No nosso plano para o amanhã, ela tem a última palavra, que está sempre ao lado do ponto. Nem mesmo pode tomar parte nas tarefas que fazem parte do seu comércio: cavar uma sepultura, fazer um caixão, limpar tudo depois de si. Preocupada com o matar, ela faz o trabalho desajeitada, sem sistematização ou habilidade. Como se cada um de nós fosse a sua primeira morte. Ah, ela tem seus triunfos, mas olhe para os seus incontáveis fracassos, sopros perdidos, e tentativas de repetição! As vezes, ela não é forte o suficiente para golpear uma mosca no ar. Muitas são as lagartas que a superam. Todas esses bulbos, vagens, tentáculos, barbatanas, traqueias, pluma nupcial e peles de inverno mostram que ela tem ficado para trás com o seu trabalho meia-boca. A vontade da doença não basta e até nossa ...

Algemas

Não me prenda em algemas nem escorra em minhas veias como sangue que não quer estancar. Não provoque a minha ausência nem me tatue de verdades que já se esgotaram com o tempo. Não me encontre na profana lua das noites em segredo que insisto em visitar. Não me pinte em cores alegres dominado pelo meu sorriso. Sou matizes do teu profundo medo. Não crie em mim, uma dama... sou apenas Mulher, sem grandes virtudes que passeia em teus pesadelos ...descalça... te fazendo arder de desejo... Angela Lara

Beija-flor

Bela flor, mais desejada Pelos ramos, em adejo És Rainha, se te vejo Entre almas, lisonjeada. Tão airosa, invejada Já nas pétalas, lampejo, Vai num salmo de festejo, Por amor, tão descuidada, Juntar rimas de alegria! E o veloz pássaro andejo Jatos de amor proferia Em lambidas de voejo, Asas lépidas batia, Era néctar, bico e beijo. Francisco Settineri

O toco de lápis

Lá, num fundo de gaveta, dois lápis estavam juntos. Um era novo, bonito, com ponta muito bem feita. Mas o outro – coitadinho! – era triste de se ver. Sua ponta era rombuda, dele só restava um toco, de tanto ser apontado. O grandão, novinho em folha, olhou para a triste figura do companheiro e chamou: – Ô, baixinho! Você, aí embaixo! Está me ouvindo? – Não precisa gritar – respondeu o toco de lápis. – Eu não sou surdo! – Não é surdo? Ah, ah, ah! Pensei que alguém já tivesse até cortado as suas orelhas, de tanto apontar sua cabeça! O toquinho de lápis suspirou: – É mesmo... Até já perdi a conta de quantas vezes eu tive de enfrentar o apontador... O lápis novo continuou com a gozação: – Como você está feio e acabado! Deve estar morrendo de inveja de ficar ao meu lado. Veja como eu sou lindo, novinho em folha! – Estou vendo, estou vendo... Mas, me diga uma coisa: Você sabe o que é uma poesia? – Poesia? Que negócio é esse? – Sabe o que é uma carta de amor? ...

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não. Manuel Bandeira

Zênite

Eu deixei o sol confuso quando o provoquei ao ferir o milênio com espinhos de rosas. Nada escapa ao olhar do definitivo porque irrito o destino ao desafiá-lo a se transfigurar em liberdade. E se dou à nostalgia o nome de pessoas importantes, é porque sei desembrulhar a alegria, esta dádiva rara, áurea, guardada ao alcance da alma. Eu prefiro falar de amor com arco-íris. Eu prefiro esculpir meu destino com o talento da paixão. O futuro dança à minha frente – respeitoso ou despudorado - enquanto cavo um abismo infinito de rosas para o sol. O sorriso existe para ser um enigma que dá alegria a quem o desvenda. Mas é a solidão que me oferece à força uma rosa vaidosa e eu escolho seu perfume ou seus espinhos. O sol e o impossível sangram poesia. Só a paixão guarda uma amostra da eternidade. Anakin Ribeiro

A mãe no asilo

Após o falecimento do pai, um bem sucedido empresário colocou a mãe num asilo, e a visitava apenas de vez em quando. Um dia, recebeu uma ligação do asilo, informando que ela estava morrendo. Foi correndo para ver a sua mãe antes que ela falecesse. Ao se aproximar dela, perguntou: – O que quer que eu faça por você, mãe? – Quero – disse a mãe – que você coloque ventiladores no asilo porque o calor castiga as pessoas que residem aqui, e quero também que você compre geladeiras, para que a comida não estrague, pois muitas vezes dormi sem comer nada. O filho disse, surpreso: – Mas só agora está me pedindo essas coisas, enquanto está morrendo?! Por que não reclamou antes?! A mãe, triste, respondeu: – Eu me acostumei com a fome e o calor, mas o meu medo é você não se acostumar quando seus filhos colocarem você aqui, quando estiver velho.