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Mostrando postagens de 2023

Necessidade

  Precisamos da verdade, não aquela que salva, mas a que nos condena ao desconhecido e à dor e que se reveste de luz ao ser tocado quando um grito de euforia pela paixão das coisas faz a esperança dançar ou quando o ódio insano pelo fracasso nos incita a golpear o destino e gera um amor indomável, antes que o sangue do silêncio brote de uma lágrima e escorra pelas mãos da poesia. Anakin Ribeiro

Paisagem

  Dorme sob o silêncio o parque. Com descanso, Aos haustos, aspirando o finíssimo extrato Que evapora a verdura e que deleita o olfato, Pelas alas sem fim das árvores avanço.   Ao fundo do pomar, entre as folhas, abstrato Em cismas, tristemente, um alvíssimo ganso Escorrega de manso, escorrega de manso Pelo claro cristal do límpido regato.   Nenhuma ave sequer sobre a macia alfombra Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece A campina, a rechã sob a noturna sombra.   E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas Selvas adentro entrando, a noite desce, desce... E espalham-se no céu camândulas de estrelas...   Francisca Júlia

O que eu gostaria de ser

  Na sala de aula, a professora pediu aos alunos que fizessem uma redação com o título “O que eu gostaria de ser”. O tema era livre: as crianças poderiam ser um personagem, um objeto, uma pessoa ou um animal… Já em casa quando corrigia as redações dos seus alunos, deparou-se com uma que a surpreendeu. O marido entrou na sala nesse momento e, vendo-a chorar, perguntou o que havia acontecido. Ela apenas lhe entregou a redação e pediu que lesse. O marido começou a ler: “Eu queria ser uma televisão. Quero ocupar o espaço dela, viver como ela vive. Ter um lugar especial para mim e conseguir reunir a minha família ao meu redor. Ser levado a sério quando falar, ser o centro das atenções e ser escutado sem interrupções e perguntas. E se eu estiver calado, quero receber a mesma atenção que a televisão recebe quando não funciona. Ter a companhia do meu pai quando ele chega em casa, mesmo cansado. Que a minha mãe me procure quando estiver sozinha e aborrecida, em vez de me ign...

Se todos fossem iguais a você

  Vai tua vida  Teu caminho é de paz e amor  A tua vida  É uma linda canção de amor  Abre teus braços e canta a última esperança  A esperança divina de amar em paz  Se todos fossem iguais a você  Que maravilha viver  Uma canção pelo ar  Uma mulher a cantar  Uma cidade a cantar  A sorrir, a cantar, a pedir  A beleza de amar  Como o sol, como a flor, como a luz  Amar sem mentir, nem sofrer  Existiria a verdade  Verdade que ninguém vê  Se todos fossem no mundo iguais a você. Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Um tigre de papel

  Sabendo que a ele caberia determinar seus movimentos e controlar sua fome, o escritor começou lentamente a materializar o tigre. Não se preocupou com descrições de pêlo ou patas. Preferiu introduzir a fera pelo cheiro. E o texto impregnou-se do bafo carnívoro, que parecia exalar por entre as linhas.   Depois, com cuidado, foi aumentando a estranheza da presença do tigre na sala rococó em que havia decidido localizá-lo. De uma palavra a outro, o felino movia-se irresistível, farejando o dourado de uma poltrona, roçando o dorso rajado contra a perna de uma papeleira.   Em vez de escrever um salto, o escritor transmitiu a sensação de movimento com uma frase curta. Em vez de imitar o terrível miado, fez tilintar os cristais acompanhando suas passadas. Assim, escolhendo o autor as palavras com o mesmo sedoso cuidado com que sua personagem pisava nos tapetes persas, criava-se a realidade antes inexistente.   O quarto parágrafo pareceu ao escritor momento ideal ...

Invisíveis

  Eu vejo você Errando pela cidade atormentada Tropeçando em sua própria sombra À beira da rua À beira do caminho À beira da loucura.   Eu vejo você Carregando o filho nos braços Quando ainda é madrugada Para a escola que você nunca frequentou À beira do sono À beira do esforço À beira da esperança.   Eu vejo você Pela fresta de alguma janela alta Arremessando a dor com tanta força! À beira do abismo À beira do desencanto E da deserção.   Eu vejo você Cuidando de um jardim que não é seu Mãos na terra, coração nos céus À beira de florir À beija de entender Quem lhe pôs aqui.   Eu vejo você Num reflexo de um espelho qualquer (O espelho é o maior dos silêncios ) À beira da água À beira do mergulho À beira de si mesmo.   Eu vejo você Vivendo o mesmo santo dia em repetição Há tantos e tantos santos anos À beira do absurdo À beira de encontrar um verso simples Que lhe convide a desp...

Homo sapiens amar

  Quem dera se as guerras fossem de escrita, E as ameaças de ataque fossem poesias E os canos, de tanques de ferro, Vasinhos de artesanato. Quem dera as declarações fossem de amor Versinhos rasgados, assim, enrolados, Lançados à sorte em nuvens Cobrindo as cidades. Quem dera os disparos fossem pinceladas, E as explosões, fogos de artifício, E as rixas só fossem travadas Em quedas de abraço. Quem dera as disputas fossem musicais, As medalhas no peito, na farda, Fossem de olimpíadas E não militares. Quem dera se armas fossem utensílios de arte, E as facas, a exemplo, usadas Somente, no último caso, Em cursos culinários. Quem dera os tratados fossem só pinturas, Fotografias de belas paisagens, De grandes, justas, cidades, De gente que tem união. Quem dera você, que agora me lê, Topasse virar revolucionador, E do homem que sabe que sabe Virasse o que só quer amor.   Schleiden

Pecados

  Quando acordei no hospital, depois de sete dias em coma, não conseguia me lembrar do chute, nem do impacto da bola contra a minha cabeça, nem da cabeça batendo no chão de cimento. Eu cursava o sexto ano do ensino fundamental e o acidente aconteceu na aula de Educação Física.   “Vamos treinar cobrança de pênalti”, disse Ruy, professor querido, apaixonado por esportes e literatura. “Antes de chutar, cada um de vocês pegará um papel dentro deste copo plástico e vai ler bem alto, o mais alto possível, a palavra sorteada. Dentro do pote vocês vão encontrar os sete pecados capitais. Ficou claro?”   Pecados capitais? Não, a molecada estava confusa, mas deixou por isso mesmo e eu fui para o meu lugar cativo, o gol. Como no filme Sociedade dos Poetas Mortos, os garotos tiravam os papeizinhos, gritavam o que estava escrito e bomba no gol. Na quadra ao lado – porque naquele tempo era assim - as meninas jogavam vôlei.   “Avareza”, gritava alguém antes de chutar e eu de...

O homem que não viu ninguém

  No antigo reino de Qi havia uma vez um homem que tinha uma sede insaciável de ouro. Infelizmente, ele era muito pobre e seu trabalho não lhe permitia obter grandes riquezas. Ele só contava com o suficiente para sobreviver. Mesmo assim, vivia completamente fascinado pela ideia de obter ouro. Este homem sabia que no mercado havia vários mercadores que colocavam lindas figuras de ouro em suas bancas de vendas. Tais objetos repousavam em um lindo manto de veludo. Os homens ricos da cidade iam ali e os tomavam em suas mãos para observá-los. Às vezes compravam e às vezes não. O homem da nossa história inventou um plano para se apoderar de uma daquelas figuras que brilhavam ao sol. Assim, um dia ele colocou suas melhores roupas e seus melhores ornamentos. Então, foi ao mercado e fingiu observar as peças de ouro. Depois, sem pensar duas vezes, pegou uma delas e saiu correndo . Não havia avançado mais de duas ruas quando foi pego. Os guardas lhe perguntaram como ele pensara em roubar ...

Auto biografia

        A Arthur Rimbaud . “Je est un autre” . Quis que o migrar fosse minha forma. Que a música fosse tudo, plena. Que a embriagues fosse a norma. Não tocaria uma só nota serena. O desconforto fosse meu porto. O descompasso meu próprio passo. O mal estar meu maior conforto E todo verso forjado a aço. Assim, através de muitas cidades. Como tudo estivesse ao inverso, Tudo seria reinventando, as artes, As crenças e, enfim, todo universo. A iluminação alcançaria, eu cria, Num inferninho musical urbano. Dançando rock, frenético, romperia, Ao infinito além do humano. Mas claro que falhei! Oh néscio Que eu era. Como um cão sofri, e tanto, E em não querer sofrer, confesso, Tudo era um tentar em vão. Portanto, Hoje almejo o tempo de cessar o verso. Simples, como um mercador fenício. Nem mais uma linha ou traço. Quero ser um mestre do silêncio. Felipe Stefani  

O maior desejo de uma mulher

  Um rei recebeu inesperadamente a visita da morte. Calmamente, ela se aproximou dele e disse que ia levá-lo. Ele pediu, implorou e a morte propôs-lhe não levá-lo se, em até trinta dias, ele revelasse a ela a resposta do seguinte enigma: “Qual o maior desejo de uma mulher?”  Desesperado pela resposta, ele saiu à procura de todas as mulheres do seu reino e ouviu a todas, mas os desejos não combinavam. Soube, então, que havia uma feiticeira muito sábia lá no alto da colina que poderia ajudá-lo. Assim, para lá se dirigiu, apesar de ser avisado de que a aparência dela era perturbadora. Relatavam que não havia na face da terra uma mulher mais feia que ela.  Lá chegando, assustou-se com a feiura da feiticeira. Era mesmo a mulher mais feia já vista.  Ela aceitou ajudá-lo, desde que ele desse a ela em casamento o mais belo de seus cavaleiros. O rei, sem poder contestar, aceitou.  “Traga-o aqui e eu direi qual o maior desejo de uma mulher”, disse ela. O rei c...

Bonitas mesmo

  Quando é que uma mulher é realmente bonita? No momento em que sai do cabeleireiro? Quando está numa festa? Quando posa para uma foto? Clic, clic, clic. Sorriso amarelo, postura artificial, desempenho para o público. Bonitas mesmo somos quando ninguém está nos vendo. Atirada no sofá, com uma calça de ficar em casa, uma blusa faltando um botão, as pernas enroscadas uma na outra, o cabelo caindo de qualquer jeito pelo ombro, nenhuma preocupação se o batom resistiu ou não à longa passagem do dia. Um livro nas mãos, o olhar perdido dentro de tantas palavras, um ar de descoberta no rosto. Linda. Caminhando pela rua, sol escaldante, a manga da blusa arregaçada, a nuca ardendo, o cabelo sendo erguido num coque malfeito, um ar de desaprovação pelo atraso do ônibus, centenas de pessoas cruzando-se e ninguém enxergando ninguém, ela enxuga a testa com a palma da mão, ajeita a sobrancelha com os dedos. Perfeita. Saindo do banho, a toalha abandonada no chão, o corpo ainda úmido, as mão...